terça-feira, 2 de abril de 2019

Fissura no espaço e no tempo.- sobre a curadoria dos espetáculos


"O teatro é um espaço de invenção e experimentação de outras sociabilidades, outros afetos e outros modos de vida. Lugar de estranhar as coisas dadas como certas, revirar a cultura para olhar além das normas estreitas que limitam nossas ações e, assim, alargar a experiência humana. Pensando nisso, e neste momento de constantes esforços de aniquilamento das diferenças, das sensibilidades e do pensamento crítico no país, propomos nesta edição do Festival Toni Cunha um encontro com obras que nos convidam a ousar imaginar outras possibilidades de ser e de conviver.

Para dar o tom a esse conjunto, dois trabalhos rompem com muitas ideias e imagens pré-estabelecidas na nossa cultura. Em "Vaga Carne", acompanhamos uma voz errante que toma contato pela primeira vez com o corpo humano, que ela invade, e conta suas sensações e pensamentos à medida que ela conhece e se apropria desse corpo. O corpo de uma mulher negra: a atriz e dramaturga mineira Grace Passô.

Em "Bola de Fogo", o performer baiano Fábio Osório prepara acarajés. Enquanto cozinha, ele partilha com os espectadores seu processo de se tornar uma baiana de acarajé. Sob o aroma do dendê, o performer vende o seu acarajé e sua criação artística. Humor, política, espiritualidade, memória, afeto e ancestralidade se cruzam no tabuleiro. Quantas normas sociais são questionadas por um artista homem quando se torna uma baiana de acarajé? Como essas formas de saber do corpo, a do artista e a da cozinheira, podem se aproximar?

Nessa toada de uma arte que nos conduz a indagar a naturalidade de alguns padrões que seguimos, "A Invenção do Nordeste" destrincha os modos de construção artificiais de uma noção de identidade nordestina, fixada em estereótipos, e abre a trilha para reflexão sobre quais outras identidades restritivas assumimos. "As Inigualáveis Descendo do Salto" e "H{3O}mens", em contraponto, apresentam representações do feminino e do masculino que ampliam nosso imaginário do que podem corpos de homens e mulheres. Do que podemos. Questões que ressoam em peças como "Cartografia do Assédio", "Bolsa Amarela" e "Ogroleto".

"Chão de Pequenos", "Fome.doc" e "Tekoha" iniciam discussões sobre questões sociais agudas do país, o primeiro pela chave poética dos corpos coreografados, os outros dois, pelo gesto analítico e documental. Com "Jogo da Guerra" e "Fauna", enfim, experimentamos as potências e limites da formação de comunidades temporárias para enfrentamento crítico dos problemas coletivos.

Obras como "Ilusões", "O Circo Fubanguinho", "Índice 22", "Meu pai é um homem pássaro", "Por onde andei", "Caê" e "Therése visita a janela azul”, presentes nesta edição, ratificam a potência da pluralidade de proposições estéticas que ocupam espaços públicos para a produção de diálogos com o teatro imanente nas salas e nas ruas da cidade.

Um festival de teatro é uma fissura no tempo e no espaço para nos determos sobre a dimensão estética da vida e suas relações com a educação, a economia, a política. Um território de riscos possíveis para nos lembrar da importância da arte para a sensibilização e a compreensão de mundo. E, mais ainda, para a fabulação de mundos."

Luciana Romagnolli, Felipe de Assis e Jorge Vermelho 

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