sexta-feira, 10 de maio de 2019

"Bolsa Amarela" por Luciana Romagnolli

foto by Carolina Copello
Para engordar as próprias vontades

por Luciana Romagnolli

Sozinha com sua imaginação, Raquel tenta descobrir o que fazer com as três “vontades” secretas que não cessam de engordar a cada vez que não se realizam. Crescer. Ser menino. Escrever. A breve jornada de formação da protagonista de “Bolsa Amarela” a fará descobrir que duas dessas vontades não brotam realmente dela.

São reações a uma maneira de se lidar com a infância regida pelas relações de poder que estruturam as hierarquias do patriarcado – resumidamente: adultos podem, crianças não; homens podem, mulheres não. Só ao conhecer outro modelo familiar é que a menina se autoriza a realizar a terceira vontade. Esta, sim, sua.

Para recriar o clássico homônimo da escritora Lygia Bojunga, o Grupo Teatral Porto Cênico desdobra Raquel em duas vozes, corporificadas pelas atrizes Aline Barth e Caroline Carvalho. Embora essa bipartição possa representar o conflito interno da personagem, a relação entre elas frequentemente é de complementaridade, como um diálogo cúmplice entre a consciência de uma criança e sua imaginação.

Esse jogo de vozes confere dinâmica e teatralidade ao monólogo interior. Outro aspecto importante da composição cênica é a dramaturgia de objetos, que subjaz os discursos gerando sentidos complementares. É o caso da cadeira e da bolsa de medidas ampliadas, que redimensionam os tamanhos dos corpos das mulheres em cena em meninas. Ao mesmo tempo, reverberam a imagem reiteradamente aludida no texto de coisas que “engordam” à medida que a vontade delas aumenta.

Há ainda outros objetos que também se metaforizam personificando desejos infantis, tal qual o “fecho com vontade de enguiçar”. O mundo de Rachel é o das coisas que dizem além de seus sentidos imediatos. É dessa maneira que a escolha dos materiais para representar irmãos, pais e outros personagens semeia possibilidades de leituras que intensificam as questões que afligem a personagem.

Ao substituir um irmão por uma bola, ou a mãe por agulhas de tricô, o grupo oferece uma operação metonímica estimulante à imaginação das crianças. E joga com as representações sociais desses papéis familiares quando os objetos associados aos integrantes da outra família que Raquel há de conhecer não correspondem aos preconceitos de gênero como os da sua casa.

foto by Carolina Copello

Assim como “Meu pai é um homem pássaro”, espetáculo em que atua o diretor de "Bolsa amarela", Marcelo F. de Souza, também apresentado no Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, a concepção de infância em cena corresponde a uma valorização da autonomia de sentimento e pensamento da criança, com respeito às suas opiniões e ao seu corpo, reconhecendo sua inteligência para compreender de maneira crítica o mundo ao seu redor.

Essa visão crítica se explicita, por exemplo, quando a menina questiona o costume adulto de empregar diminutivos ao se dirigir a ela: “Por que eles botam ‘inho’ em tudo e ficam falando com essa voz bobalhona”?, queixa-se ao público. Na maior parte do tempo, a peça cuida dessa economia discursiva avessa às facilitações que subestimem seus interlocutores, qual seja a idade. Caso do cortante desabafo de Raquel: “Acho fogo ter nascido menino“. Curto e direto, ele manifesta pensamento comum – e frequentemente reprimido – em garotas submetidas à opressão de gênero.

Quando o jogo cênico é a garota representar os outros personagens ao seu redor, personificados nos objetos, algumas vezes a fala se demora em uma cadência pausada com inflexões muito marcadas, como as que incomodam nos adultos. Ainda que essa prosódia contenha a ironia da imitação do que ela ouve deles, torna-se uma forma recorrente de comunicação em cena.

Diante do espetáculo, então, algumas vontades de espectadora também podem engordar. Uma delas é que as partituras vocais e de ações da animação de objetos espelhem a criatividade empregada na atribuição de sentidos a eles, com execução rigorosa. Especialmente para a manipulação do galo, cujo boneco galináceo de tecido não carrega metáfora como outros objetos manipulados em cena, tampouco é articulado como um títere, de modo que se torna um desafio dar-lhe a mobilidade e a expressividade que as muitas contracenas com Raquel solicitam.

A certa altura, o galo revela ter fugido do galinheiro por estar cansado de dizer às galinhas o que elas devem fazer. Ele representa, a seu modo, a contraparte de Raquel, a quem todos querem regular o como agir, e um elogio à autonomia de cada pessoa, pequena ou grande, para realizar seus desejos.

Raquel tenta distinguir a si mesma entre as narrativas que o mundo adulto despeja sobre ela, para identificar de quais desejos não se pode soltar e ter a coragem de seguir com eles. Quiçá inspire o público a carregar da infância para a vida adulta a bolsa mais leve possível, sem tantas repressões.

***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

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