sábado, 4 de maio de 2019

"Therése visita a janela azul" por Luciana Romagnolli

foto by Leonam Nagel

Delicadeza diante do assombro

por Luciana Romagnolli

Aquilo que excede a vida talvez caiba numa caixinha de teatro de miniaturas. Como artesãos de diminutas construções, habitadas por objetos que personificam homens e mulheres em seus momentos derradeiros, os artistas do sexteto Lambe-Lambe criam microcosmos onde seja possível a elaboração da finitude e do luto. Ao mistério do fim da existência, respondem “dando vida” a esses pequenos objetos inanimados. Assim, encontram na arte uma forma efêmera de estabelecer algum controle sobre o inevitável. Ainda que seja no campo da manipulação das coisas, as palpáveis e as impalpáveis. E da fabulação como atribuição de sentidos ao insondável.

Dentre as companhias envolvidas no projeto “Instantes de Passagem”, está a catarinense Eranos Círculo de Arte, que apresentou três peças curtas, “A janela azul”, “A visita” e “Therése”, unidas sob o título “Therése visita a janela azul”, no 6º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, em Itajaí (SC). Três instantâneos que precedem a morte. Réquiens que convidam o público a deter o olhar sobre o último suspiro dos personagens.

A visita aludida no título pode ser compreendida tanto como a da morte quanto como a do público. Cada dispositivo armado pelos artistas supõe uma relação do olhar ligeiramente distinta, e que passa a fazer parte da dramaturgia de cada peça. Na primeira, a cortina da caixa é levemente afastada para espiarmos pela janela a intimidade familiar refletida nos objetos pessoais. Na segunda, o sentido de clandestinidade do olhar se aguça porque é preciso fechar um dos olhos para enxergar pelo outro através de um pequeno buraco que não deveria estar ali, num ambiente hospitalar. Por fim, a visão pode entrar pela porta da frente de uma casa, mas encontra um cenário de solidão derradeira.

Há algo de furtivo em todas essas situações a que o espectador é chamado a testemunhar. Impressão reforçada pela curta duração de cada cena, próxima dos três minutos. Na contramão de um cotidiano apressado e altamente espetacularizado, a percepção do público é redimensionada para os detalhes. Para a fina pinça com a qual o manipulador serpenteia o fio vermelho que se faz braço amarrado a um compasso (ou objeto semelhante) de metal que se faz homem. Para a delicadeza diante do assombro pela partida do pai.

foto by Leonam Nagel

Em “A Janela Azul”, João Freitas recepciona o espectador com um depoimento direto: essa é a casa da sua infância e a história de um acontecimento que vai marcá-la. Propõe, assim, um pacto de cumplicidade, que envolve toda cena em um efeito de autenticidade e clama por empatia.

Poucos signos compõem a narrativa visual e sonora que se segue. A fotografia condensa as informações sobre quais são as relações familiares e os afetos vividos. O barulho das chaves é suficiente para evocar a presença humana, e o de uma colisão de automóvel, o acidente. Um acender e apagar de luz, uma sombra que se move e uma música comovente compõem a atmosfera de rememoração da despedida. Nem tudo fica compreensível, algumas simbologias sugeridas por pequenos gestos escapam, imprecisos. De certo modo, o que se encena é justamente o vazio.

A visita” faz uma aproximação mais metafísica da morte, a investigar alguma beleza na partida. Para isso, usa os objetos que se assemelham a compassos, com uma “cabeça” redonda e “pernas” longas. A situação é de um quarto de hospital onde alguém vive seus minutos terminais diante de outro que chega. Nesse encontro com a morte do outro, o que emerge é a transcendência do corpo em espírito, representada como efeito de luz e dança. Um teatro de animação já não do corpo, da alma.

Novamente, a música entra para assegurar o tom emocional, na ausência de palavras. Só quando encerrada a cena, o manipulador Leandro Maman atesta o caráter de autoficção do que foi visto: a morte do pai como foi imaginada, pouco antes de ser vivida. O relato tardio chama a uma revisão da cena que lhe confere um caráter mais íntimo, e nos defronta com a estranheza de uma suposta autenticidade do que vemos, e que, fora do teatro, seria invisível aos olhos. Ao mesmo tempo, pode conflitar com os sentidos mais livres que a imaginação do espectador havia elaborado antes da fala do manipulador.

Por fim, “Therése” suspende o efeito de real – talvez por não ser apresentado por sua autora, Sandra Coelho. A indiscrição ofertada ao espectador, aqui, é a de observar uma morte solitária. A personagem, significativamente, uma mulher feita de gaze. Mais do que as ações banais que precedem o falecimento de Therése, o que chama a atenção é a invasão das mãos do manipulador envolvidas em luvas pretas. As únicas a encontrá-la caída no chão e a cobrir o corpo já inanimado. Elas aludem a um fora de cena, a um fora da vida, talvez.

É curioso, então, que essas três peças curtas sejam anunciadas como independentes entre si, e isso justifique a organização de filas separadas que afastam a possibilidade de o público assistir a todas. Há muita relação entre elas.

A sobreposição das três evidencia como as características constitutivas da linguagem (do lambe-lambe) e da técnica (da manipulação de objetos inanimados) compõem um discurso sobre a própria relação do humano com o inumano. E sobre as possibilidades de um fazer criativo com a nossa insignificância.

***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

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