terça-feira, 7 de maio de 2019

"Meu Pai é um homem pássaro" por Luciana Romagnolli

foto by Carolina Copello

Ah, insensatez, um amor tão delicado

por Luciana Romagnolli

É a menina Lizzie quem diz ao pai para que vá tomar banho. Distraído da rotina básica do dia a dia, ele não corresponde a um ideal de masculinidade ou de maturidade culturalmente associado à figura paterna. É um homem sensível e sonhador, desses com a cabeça à deriva pelas nuvens.

Nessa inversão de papéis urdida em "Meu pai é um homem pássaro", cabe à menina de pés no chão chamar a atenção dele outra vez à terra. Um gesto importante diante do que olhos científicos poderiam diagnosticar como uma depressão daquele homem que come minhocas após a partida da esposa/mãe – ou alguma outra tipificação para tal abalo na sanidade.

Essa abordagem dos afetos e cuidados envolvidos em uma relação entre pai e filha, no contexto nada romantizado de uma situação de perda compartilhada e de fragilidade paterna, colocam a peça apresentada pela Cia Experimentus Teatrais, de Itajaí, num lugar interessante e incomum de elaboração artística de experiências subjetivas delicadas para pequenos e grandes.

Na dramaturgia criada a partir do romance homônimo de David Almond, a fantasia entra como uma forma de tornar mais leve um mundo que não preserva as crianças de dificuldades e responsabilidades desproporcionais ao seu tamanho, acreditando na inteligência e na sensibilidade delas. Seja a de Lizzie, seja a do público de seis anos adiante.

Enquanto a fantasia de voar infla os sonhos e repara as conexões familiares abaladas pela ausência materna, a história também põe em choque no universo adulto duas concepções de mundo distintas: uma pragmática, realista, objetiva, quiçá cética, representada pela figura da Tia Doreen (nome que soa como “Diadorim” muitas vezes, numa involuntária homenagem a Guimarães Rosa e à desestabilização dos lugares de força entre o feminino e o masculino em “Grande Sertão: Veredas”); outra lúdica, romântica, visionária, quiçá escapista, encarnada pelo pai.

A razão entre elas no discurso cênico é explicitada em uma placa sobre o palco: “Sonhar pode”. Que não se imagine, porém, essa como uma licença para evadir-se em ingênua utopia. O belo em “Meu pai é um homem pássaro” reside nos contrapontos sensíveis de um destemor do fracasso e de uma solar melancolia.

Essa alegria gotejada de desalento habita especialmente a primeira metade da peça. O humor pontuado em gestos, frases e sons não anseia por respostas exaltadas da plateia. Abdica-se do tom esfuziante (sobretudo das falas infantilizadas) e da hiperestimulação comum a produções feitas para crianças pautadas por lógica espetacular sensacionalista, como muitas franquias de sucesso comercial entre esse público. A paleta de sentimentos partilhada em “...Homem pássaro” abraça mais cores e permite que, junto à euforia (como se vê em reações à atuação de Daniel Olivetto), as intensidades brandas apareçam.

foto by Carolina Copello
Dessa forma, o trabalho concebe uma criança-espectadora também suscetível a uma amplitude maior de experiências sensíveis e afetivas. E esse não é mérito exclusivo do texto. A encenação da companhia Experimentus orquestra uma harmoniosa composição colorida pela teatralidade das muitas dimensões materiais de elaboração da cena.

Em consonância com a música ao vivo, sobressaem o divertido jogo da sonoplastia teatralmente executada aos olhos e ouvidos da plateia e a animação de objetos inesperados (como um saca-rolhas) para representar os competidores ao desafio de voar. Compartilha-se, assim, um pouco do modo de construção da fantasia.

Eis a reafirmação do discurso cênico de que o sonho não precisa ser uma ilusão cega às propriedades concretas da ação humana e suas vulnerabilidades. Tão palpáveis, precárias e repletas de potencial como as asas de tecido que vemos enquanto se enumeram as tecnologias mais ostensivas dos concorrentes a uma disputa aérea. “...Homem pássaro” restitui outra dimensão de grandeza ao humano.

A estimulação que interessa a esse projeto cênico para todas as idades, então, é a que pressupõe seres curiosos e em constante processo de descoberta, como são as crianças (e os adultos?), à imagem do melhor que o pai-corvo pode inspirar.

Na apresentação realizada na Casa da Cultura Dide Brandão, dentro da programação do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha 2019, talvez pela acústica do ambiente, talvez pelo volume da projeção de voz do elenco, a escuta ficou no limite da compreensão em alguns momentos. Independente disso, na presença de um público em parte mais novo do que a faixa etária à qual se direciona o trabalho, a companhia atraiu os olhares e fisgou atenções concentradas para a fábula agridoce sobre a sensatez de sonharmos juntos.

***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

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