sábado, 11 de maio de 2019

"Caê" por Valmir Santos

foto by Leonam Nagel

A rosa dos ventos ou o aprendizado pela pedra

por Valmir Santos

Simpatia É Quase Amor, chama-se assim o celebrado bloco carnavalesco de Ipanema que sai desde os anos 1980, no Rio de Janeiro. O nome é lembrado a propósito da primeira impressão diante do solo “CaÊ”. No teatro, e na arte em geral, a superfície sentimental tem pouca ou nenhuma relevância se os desígnios poéticos ambicionados pelos criadores de uma obra não pararem de pé, digamos assim. Não é o caso do trabalho em análise.

De rosto e olhar mistos de zen e sapeca, o atuante esguio em figurino escuro pontilhado de coloridos sai da coxia saltitante em sua bike estilizada com jeito de velocípede. Ele carrega nas costas uma baita caixa térmica de invejar entregador do serviço de delivery, seu baú de bons achados nas andanças. Nessa volta inicial de reconhecimento sobre o território cênico, de base branca forrada de desenhos gráficos, objetos e pedras em relevo, Mauro Filho já tinha o público nas mãos, como se diz dos comediantes à mancheia. E o jogo mal começava.

O artista de fato conseguiu sustentar a primeira impressão ao longo do encontro com as crianças e os adultos na apresentação de “CaÊ” dentro do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, neste dissimulado inverno de Itajaí.

Entre as muitas acepções de simpatia está a “faculdade de compenetrar-se das ideias ou sentimentos de outrem”. Ou seja, a disposição para as afinidades e reciprocidades daquilo, daquele ou daquela que solicita ou é solicitada, solicitado, enfim, a disposição sempre demandará trabalho considerável de ambas as partes.

A beleza do espetáculo da Karma Cia. de Teatro repousa no convencimento da audiência de que tudo está se passando nos conformes da gangorra lírico-lúdica. O abstracionismo rege o sistema cênico da obra conquanto sua matéria-prima seja feita do legado de alguém que soprou a nau da trupe para outra direção que não aquela em que estava concentrada nos ensaios antes da morte do artista visual e poeta Mauro Caelum (1958-2016). Esse céu que vem protegendo esta edição do festival com muita solaridade para enfrentar a sombra que pesa sobre a vida brasileira atual. “Caélium” é a pronúncia do sobrenome que quer dizer céu, lemos no livro dedicado ao artista e lançado em 2013 na cidade com o subtítulo: “filosofia, arte e meio ambiente”.

foto by Leonam Nagel

É em nome do pai que Mauro Filho e os pares reprocessaram as coordenadas que o acaso impôs. O dispositivo de uma bússola de brinquedo evidencia a metáfora da navegação da qual a equipe tomou tento ao atingir consistência imperceptível numa primeira mirada e resplandecente justamente pela discrição de que ela fosse morar nos detalhes.

A dramaturgia do também diretor convidado Max Reinert subtrai o texto – isso mesmo que você leu –, uma faca de dois gumes quando não se quer propor exatamente um espetáculo de mímica. Tampouco a comédia física ou a expressividade da dança.

Combinação assim só vimos em “Nomes do pai” (2010), espetáculo da Cia. da Memória (SP) em que Luis Alberto de Abreu, expoente da dramaturgia nacional (introdutor da criação colaborativa e parceiro de Grupo Galpão, Teatro da Vertigem, Cia. Teatro Balagan e outros), inspirou-se livremente em dois autores tchecos, Franz Kafka (“Carta ao pai”) e Rainer Maria Rilke (“Cartas a um jovem poeta”) para abrir mão da palavra.

Na psicanálise, Lacan atribui função simbólica à expressão “nome do pai” para destacar que a filiação também é um fato da linguagem. Aliás, um dos seus aforismos mais conhecidos versa sobre “o inconsciente estruturado como uma linguagem".

CaÊ” oferta meio termo singular que confere certa remissão à cultura oriental na gestualidade precisa, jamais virtuosística, e na ambientação sonora (por Hedra Rockenbach), da qual a canção-chefe “Mundo novo” flerta com a poesia concreta (“um ovo/ mundo novo/ mundo novo eu vi/ um ovo mundo novo/ e vou partir daí”). Soa como mantra.

Em suas linhas geométricas, fios infinitos puxados pela narrativa não verbal, o atuante movimenta-se por meio das lateralidades e perpendicularidades. A sinopse dessa experiência poderia ser resumida ao chamado para circular por aí, viajar com a criança livre dos pais e responsáveis.

Imagens projetadas somam texturas, como o desenho da rosa dos ventos que delineia os pontos cardeais e seus intermediários e serve para a navegação geográfica ou para a localização de determinado corpo ou objeto em relação a outro.

A memória do pai que sublimou a arte no ato de viver permite ao atuante configurar a si, condutor de fundo autobiográfico tocante e devidamente distanciado sem perder a divisa do afeto. Como se um contador de história, porém não estrito ao formato dessa prática. Não há roda, mas sentimo-nos como se numa, em plena relação frontal da sala multiuso da Inventiva Itajaí. Por isso, finda a apresentação, o público demorou a se mexer, bebês incluídos. Não queria ir embora do habitat forjado do aprendizado pelas pedras do caminho nas escolhas poéticas.

Em A educação pela pedra (1965), o escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto esquiva-se do poema sentimentalista, entre outras escolhas, sem que a rigorosidade formal o impedisse de incorporar temas os mais triviais.

A sensorialidade da fábula encenada por Reinert é a espinha dorsal do convite ao jogo de acampar e desacampar que formula (joelheiras e cotoveleiras dimensionam o tamanho da tarefa do ator). Isso significa tomar a plateia pelas mãos do imaginário, deslocá-la para o farol da ilha da utopia no interior de cada testemunha.

Antes, o próprio Mauro Filho dá notícias do distanciamento autobiográfico nos pesos e contrapesos da peregrinação, sóis e luas adentro. De repente a narrativa guina para a ancestralidade. Uma máscara que parece feita de papel machê, como aquelas gestadas pelo artista homenageado, apresenta traços de povos originários e a sonoridade confirma a discreta saudação aos que vieram antes de nós. Num átimo, fomos transportados lá para os tempos imemoriais.

***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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