terça-feira, 7 de maio de 2019

"Meu Pai é um homem pássaro" por Valmir Santos

foto by Carolina Copello

Da sutil e revolucionária arte de erguer as pernas para o ar

por Valmir Santos

Estranhamento e profundidade, sabemos, são perfeitamente conciliáveis na arte afeita às crianças e adolescentes. A Cia. Experimentus provê o público dessa premissa no espetáculo “Meu pai é um homem pássaro”, adaptação coletiva do livro de mesmo nome do britânico David Almond (“My dad's a birdman”, de 2007, editado no Brasil pela Martins Fontes).

No enredo, uma menina estudante pactua da fantasia do pai de voar. Há pouco ela havia ficado órfã de mãe e ele, portanto, viúvo. A fábula gravita a disposição, primeiro dele, depois endossada pela filha, de participarem de uma inusitada competição da comunidade onde vivem e que instiga as pessoas a tentar a proeza de sustentar-se no ar feito ave humana.

A decisão de se inscreverem, os preparativos para encontrar o melhor método propulsor movido a “asas e fé” e a oposição de uma tia que vê no pai um amalucado e na filha, “miolo mole” (fica testando se ela sabe somar, multiplicar, soletrar) são os conflitos mais terrenos, pois a peça é profícua em outros nexos simbólicos, existenciais, inclusive da ordem da fenomenologia do espírito na busca do conhecimento de si e da natureza humana.

O texto tem lastros do mito grego de Ícaro, filho de Dédalos, este um notável arquiteto e inventor. Segundo o relato secular, eles foram encerrados num labirinto a mando de um soberano. O pai bolou asas artificiais atando as penas soltas dos pássaros que sobrevoavam o local. Untou o aparato com espessa camada de cera. E assim eles voaram para fugir do cárcere. Ícaro, porém, não atentou à recomendação paterna para que não se aproximasse muito do sol. Daí o par de asas derreteu e ele caiu, morrendo afogado.

Transpondo a mitologia para os dias de hoje, Almond desmonta para os leitores e espectadores a bomba-relógio do imperativo da competitividade. No mundo em que a propaganda diz que estar preparado é tudo, a tônica corporativista invadiu o convívio interpessoal, pior, a artificiosa hiperatividade familiar à qual a prole logo é induzida.

A história reaviva a máxima de que é mais importante competir com dignidade do que vencer, atribuída ao pedagogo francês Pierre de Coubertin (1863-1937), que aproximou o aprendizado da prática esportiva e foi o pai dos Jogos Olímpicos da era moderna.

Essas coordenadas éticas-filosóficas brotam com naturalidade da singeleza da narrativa e são plenamente contempladas na direção de Daniel Olivetto. As atuações passam ao largo do registro infantilizado e a musicalidade é um trunfo da dimensão do sutil.

foto by Carolina Copello

A Cia. Experimentus alcança uma inventiva teatralidade das miudezas para entregar uma experiência maiúscula ao público infantojuvenil e aos pais e responsáveis, como na sessão de plateia cheia e compenetrada no teatro da Casa da Cultura Dide Brandão.

Uma pequena flâmula vermelha com a inscrição “Sonhar pode” é afixada numa das partes do cenário e saúda a intervenção que o artista plástico e poeta Mauro Caelum (1958-2016) fez em diferentes pontos de Itajaí com esses dizeres.

A caixa de ferramenta vira lancheira da aluna que ruma para a escola. O lençol do varal cenográfico inteiriço estende-se ao tablado, fundindo chão e céu. Uma piscina infantil é convertida no rio que os seres humanos alados vão tentar atravessar. O mesmo tanque plástico e colorido vira ninho em que pai e filha brincam com as pernas para o ar ou fazem das mãos pássaros sem as tradicionais sombras da contraluz.

E a imaginação voa longe ainda com os objetos não convencionais que os atores usam para a base percussiva das passagens incidentais ou das canções em violão, voz e lirismos de Natália Pereira, que divide as composições com o diretor musical Rafaelo de Góes (“Voei/ Foi tão real/ É que quando se sonha/ Posso ser corvo ou pardal”, diz uma das letras).

Ressalvadas escorregadelas na projeção da voz naquela tarde, o elenco garante a cadência de sentidos e de intencionalidades em momentos como o do pai Jack (por Marcelo F. de Souza) engolindo uma minhoca e deixando a audiência em suspenso. Da filha Lizzie (Andréa Rosa) invertendo expectativas e fazendo ponderações adultas ao pai. Da tia Doreen (Sandra Knoll) recuando da ranhetice e compreendendo o outro que pensa diferente dela. E do diretor da escola Mint (Olivetto), figura de autoridade também contaminada por quem sonha.

***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

Nenhum comentário:

Postar um comentário