Criticas

foto by Leonam Nagel (Ambar Audiovisual)

Infinito particular

por Valmir Santos

Uma das imagens icônicas do cinema do grego Theo Angelopoulos é aquela da mão agigantada de uma estátua de concreto em “Paisagem na neblina” (1988). O fragmento maciço da escultura de concreto, cujo dedo indicador está quebrado (o dedo de Deus?), é alçado das águas de uma baía por meio dos fios de aço de um helicóptero. E assim desaparece no céu, sob o olhar estupefato das duas crianças protagonistas, menina e menino, irmãos em viagem iniciática da Grécia à Alemanha em busca do pai que não conheceram.

O fragmento do filme aportou na memória durante o miniespectáculo “Therése”, uma das três pernas do teatro de lambe-lambe “Therése visita a janela azul”. Aos poucos, primeiro uma, depois as duas mãos do manipulador dão vida ao boneco na cena de cerca de três minutos que é acompanhada por uma pessoa de cada vez. Após idas e vindas ao hospital, a figura retorna à casa e busca forças para deixar tudo arrumado antes de sucumbir.

A morte é o ponto de partida dessas dramaturgias. Em “A visita”, na caixa-teatro vizinha, acompanhamos o momento finito de um homem no leito hospitalar. Em “A janela azul”, na terceira casa cenográfica, sempre com fachada artesanal singular, a narrativa versa sobre a lembrança da infância de quem perdeu a mãe que via aparecer no portão de casa quando ela voltava do trabalho.

São episódios dramáticos revestidos de encantamento. O tom fabular desce ao plano da intimidade sem ser invasivo, irmanando o espectador naquela que talvez seja a condição humana mais essencial, a da inexorabilidade da morte. A intuição de que a consciência da brevidade deveria pautar a existência em outras parâmetros, ética e filosoficamente falando.

Sentamos diante da caixa-teatro, à maneira de uma maquete. Colocamos o fone de ouvido para sincronizar a paisagem sonora. E observamos o que se passa lá dentro através de uma fresta, um buraco ou ainda uma portinhola, minúsculos. O procedimento se repete nos três suportes da intervenção do coletivo Eranos - Círculo de Arte transcorrida embaixo da extensa figueira da praça Arno Bauer, no centro de Itajaí.

Em suas sínteses de tempo e de escala, essas experiências sem palavras emanam silêncios da ordem da espiritualidade. São obras abertas ao repertório da vida de cada indivíduo, não importa a idade, postado numa das três filas da praça e disposto a se deixar tocar pelas respectivas partes de “Therése visita a janela azul”.

Apreendidas aleatoriamente, porque independentes, elas dão margem para conectivos conforme, de novo, a subjetividade de quem as frui e pode compor um arco de leitura particular.

foto by Leonam Nagem (Ambar Audiovisual)

Caso da mãe que aguardava sua vez numa caixa-teatro, enquanto a filha e a neta faziam a mesma coisa nas outras duas filas – lugar de exercer sociabilidades, ainda que breves. Ela trabalhou por 33 anos preparando cadáveres para velório numa cidade do interior do Rio Grande do Sul. Mudou-se para Itajaí há apenas duas semanas e foi surpreendida pela abordagem do tema, que lhe é familiar, e pela forma miniatural do teatro lambe-lambe, no âmbito do 6º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha.

Além do triunfo da sutileza na execução, pelo trio de caixeiro-manipuladores, chama atenção nessa linguagem o uso de material reciclado na confecção dos bonecos e dos objetos e adereços. Inclusive ao imprimir noções de perspectiva espacial e de desenho de luz que em nada devem aos recursos do palco ou da sala multiuso.

Angelopoulos abre o seu filme com a seguinte frase, na voz da menina: “No princípio, era a escuridão”. Pois a ausência de luz está na origem dos espetáculos-relâmpagos que capturaram o público naquela tarde ensolarada. A dor tem seus contrastes.


***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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foto by Leonam Nagel

Delicadeza diante do assombro

por Luciana Romagnolli

Aquilo que excede a vida talvez caiba numa caixinha de teatro de miniaturas. Como artesãos de diminutas construções, habitadas por objetos que personificam homens e mulheres em seus momentos derradeiros, os artistas do sexteto Lambe-Lambe criam microcosmos onde seja possível a elaboração da finitude e do luto. Ao mistério do fim da existência, respondem “dando vida” a esses pequenos objetos inanimados. Assim, encontram na arte uma forma efêmera de estabelecer algum controle sobre o inevitável. Ainda que seja no campo da manipulação das coisas, as palpáveis e as impalpáveis. E da fabulação como atribuição de sentidos ao insondável.

Dentre as companhias envolvidas no projeto “Instantes de Passagem”, está a catarinense Eranos Círculo de Arte, que apresentou três peças curtas, “A janela azul”, “A visita” e “Therése”, unidas sob o título “Therése visita a janela azul”, no 6º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, em Itajaí (SC). Três instantâneos que precedem a morte. Réquiens que convidam o público a deter o olhar sobre o último suspiro dos personagens.

A visita aludida no título pode ser compreendida tanto como a da morte quanto como a do público. Cada dispositivo armado pelos artistas supõe uma relação do olhar ligeiramente distinta, e que passa a fazer parte da dramaturgia de cada peça. Na primeira, a cortina da caixa é levemente afastada para espiarmos pela janela a intimidade familiar refletida nos objetos pessoais. Na segunda, o sentido de clandestinidade do olhar se aguça porque é preciso fechar um dos olhos para enxergar pelo outro através de um pequeno buraco que não deveria estar ali, num ambiente hospitalar. Por fim, a visão pode entrar pela porta da frente de uma casa, mas encontra um cenário de solidão derradeira.

Há algo de furtivo em todas essas situações a que o espectador é chamado a testemunhar. Impressão reforçada pela curta duração de cada cena, próxima dos três minutos. Na contramão de um cotidiano apressado e altamente espetacularizado, a percepção do público é redimensionada para os detalhes. Para a fina pinça com a qual o manipulador serpenteia o fio vermelho que se faz braço amarrado a um compasso (ou objeto semelhante) de metal que se faz homem. Para a delicadeza diante do assombro pela partida do pai.

foto by Leonam Nagel

Em “A Janela Azul”, João Freitas recepciona o espectador com um depoimento direto: essa é a casa da sua infância e a história de um acontecimento que vai marcá-la. Propõe, assim, um pacto de cumplicidade, que envolve toda cena em um efeito de autenticidade e clama por empatia.

Poucos signos compõem a narrativa visual e sonora que se segue. A fotografia condensa as informações sobre quais são as relações familiares e os afetos vividos. O barulho das chaves é suficiente para evocar a presença humana, e o de uma colisão de automóvel, o acidente. Um acender e apagar de luz, uma sombra que se move e uma música comovente compõem a atmosfera de rememoração da despedida. Nem tudo fica compreensível, algumas simbologias sugeridas por pequenos gestos escapam, imprecisos. De certo modo, o que se encena é justamente o vazio.

A visita” faz uma aproximação mais metafísica da morte, a investigar alguma beleza na partida. Para isso, usa os objetos que se assemelham a compassos, com uma “cabeça” redonda e “pernas” longas. A situação é de um quarto de hospital onde alguém vive seus minutos terminais diante de outro que chega. Nesse encontro com a morte do outro, o que emerge é a transcendência do corpo em espírito, representada como efeito de luz e dança. Um teatro de animação já não do corpo, da alma.

Novamente, a música entra para assegurar o tom emocional, na ausência de palavras. Só quando encerrada a cena, o manipulador Leandro Maman atesta o caráter de autoficção do que foi visto: a morte do pai como foi imaginada, pouco antes de ser vivida. O relato tardio chama a uma revisão da cena que lhe confere um caráter mais íntimo, e nos defronta com a estranheza de uma suposta autenticidade do que vemos, e que, fora do teatro, seria invisível aos olhos. Ao mesmo tempo, pode conflitar com os sentidos mais livres que a imaginação do espectador havia elaborado antes da fala do manipulador.

Por fim, “Therése” suspende o efeito de real – talvez por não ser apresentado por sua autora, Sandra Coelho. A indiscrição ofertada ao espectador, aqui, é a de observar uma morte solitária. A personagem, significativamente, uma mulher feita de gaze. Mais do que as ações banais que precedem o falecimento de Therése, o que chama a atenção é a invasão das mãos do manipulador envolvidas em luvas pretas. As únicas a encontrá-la caída no chão e a cobrir o corpo já inanimado. Elas aludem a um fora de cena, a um fora da vida, talvez.

É curioso, então, que essas três peças curtas sejam anunciadas como independentes entre si, e isso justifique a organização de filas separadas que afastam a possibilidade de o público assistir a todas. Há muita relação entre elas.

A sobreposição das três evidencia como as características constitutivas da linguagem (do lambe-lambe) e da técnica (da manipulação de objetos inanimados) compõem um discurso sobre a própria relação do humano com o inumano. E sobre as possibilidades de um fazer criativo com a nossa insignificância.

***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

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foto by Lenon Cesar

Mulher não anda só

por Luciana Romagnolli

Nascer em corpo identificado como “mulher” significa crescer à sombra de um ideal de feminilidade que prescreve uma série de normas de aparência, comportamento e interação social. Significa ser um corpo tratado não só como objeto do desejo alheio, mas um objeto imperfeito, que precisa ser constantemente modificado, modelado, esticado, pintado, aparado, apertado para ser considerado aceitável.

As formas de tortura socialmente legitimadas às quais o corpo feminino é submetido não só são perversamente naturalizadas, mas vão fixando uma identidade ao longo da vida. A tomada de consciência do seu caráter repressor exige tempo e esforço desmedido para desprender-se dela. “Cartografia do assédio”, da Karma Cia. de Teatro, com concepção de Pietra Garcia e do diretor Renato Turnes, mobiliza uma necessária pedagogia da desaprendizagem do que é ser mulher.

A coordenada cartográfica é o entrecruzamento do estético com o social, onde a teatro se abre a um contexto mais amplo e elabora respostas artísticas a ele, acentuando a percepção da arte como nada além da vida – esta vivida cotidianamente, mas esteticamente organizada.

Manifesto
Tal organização sensível absorve estratégias próprias de mobilizações políticas feministas. É interessante notar o movimento pendular: assim como as manifestações sociais em espaço público apresentam um forte caráter estético, expresso nas pinturas corporais, nas artes dos cartazes, nas coreografias dos corpos e na poesia das palavras, o teatro engajado contemporâneo, por vezes, tem se aproximado de uma estética da manifestação.

No início de “Cartografia do assédio”, Pietra recebe o público em uma sala fechada. O primeiro espaço a cartografar é seu próprio corpo. Sobre ele, se inscrevem linhas divisórias, que lembram os cortes de carne de vaca, e nomes de mulheres que concederam breves relatos de assédio. A seleção desses depoimentos preserva as contradições de falas que, ocasionalmente, reproduzem a lógica machista.
foto by Lenon Cesar 

Não à toa, esse escrever sobre a pele é uma estratégia frequente em diversas ações do movimento feminista, desde as manifestações públicas a intervenções como “Corpos poéticos”, da mineira Ana Luiza Gonçalves. O ato chama a atenção para como as representações culturais ficam gravadas no corpo. Note-se que o verbo “gravar” significa traçar, fixar, mas também oprimir e molestar 1 . A memória das violências sofridas é física, retém musculaturas e terminações nervosas, enverga ombros, abaixa cabeças.

A maneira própria de Pietra conduzir essa reescritura é marcada pelos caminhos do olhar da atriz. Quando procura no vídeo registrado ao vivo um espelho para se enxergar, vemos a dependência de uma imagem externa para o reconhecimento de si – e o campo do audiovisual como produtor dessas imagens na contemporaneidade. Ora perdido, ora cansado, ora determinado, seu olhar expressa afetos comuns à experiência reincidente do assédio e interpela espectador a espectador silenciosamente.

A esse prólogo, que prepara um território discursivo comum, segue-se o cortejo pelo centro da cidade, seguindo os passos da atriz. A seminudez do espaço privado é substituída por uma espécie de uniforme para o enfrentamento da batalha que é uma mulher sair à rua. Todas as calçadas são ocupadas por homens, lembra-nos Pietra, e é preciso desviar de um por um para chegar ao destino.

A atriz propõe ações e lugares distintos para homens e mulheres, delimitando a diferença das perspectivas. Coloca o público masculino em situações constrangedoras, e o feminino, na posição de expressar os assédios sofridos e responder a eles. Inversão com a qual corrige a percepção da mulher como parte constrangida em uma cena de assédio.

Ao longo do trajeto, o cortejo vai se fazendo passeata e o público se torna o corpo coletivo de uma manifestação que atravessa ruas e praças. A dimensão e a potência dessa ação na paisagem urbana encontram seu limite em certa timidez na relação com o entorno. Mais cartolinas, mais cartazes, mais atenção direcionada às pessoas ao redor poderiam ampliar e intensificar os efeitos da intervenção na cidade. Quiçá, assim, o teatro seja capaz de atingir uma população alienada do campo artístico. Por fim, retornamos com Pietra a um espaço privado onde ela retoma o próprio corpo como coordenada da cartografia do assédio. Entre fotos de infância e uma construção da feminilidade padrão, aparece a operação de enquadramento do corpo e esmagamento da carne para atender ao ideal de mulher. A soma de vivências pessoais finalmente desemboca na enunciação de um problema de segurança social. A atriz abandona o público ao desconforto do enfrentamento com a violência e sua demanda por uma contínua desaprendizagem que há de ser, necessariamente, individual e coletiva.

***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

1 Ver Houaiss. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-3/html/index.php#38

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foto by Lenon Cesar

Jornada interior e demandas do espaço público

por Valmir Santos

Para quem vive em metrópoles, os ouvidos logo distinguem o aspecto silencioso das ruas do centro comercial de Itajaí numa manhã de sábado. A Karma Cia. de Teatro desmancha a presumida qualidade citadina com uma criação que grita as formas de violência contra a mulher.

“Cartografia do assédio” é a elaboração performativa da pesquisa de campo da atuante Pietra Garcia acerca das abordagens machistas no espaço público. Ao culminar em compartilhamento de dados do feminicídio local, explicita parcela paradoxal da sociedade conivente com a cultura da agressão.

Itajaí teve 1.042 denúncias de violência contra a mulher no ano passado, liderando o índice de Santa Catarina se considerada a proporcionalidade da população. No estado, os casos aumentaram 83% só nos primeiros três meses de 2019.

O desafio de qualquer artista em sublinhar a denúncia sem perder de vista o seu horizonte de invenção poética torna-se redobrado diante da urgência dos dias brasileiros. A concepção da atriz e do diretor Renato Turnes processa a pesquisa de campo com fundamentos bem delineados da performance, porém não avança no hibridismo de espaços e de linguagens que propõem sem que as respectivas potencialidades fossem exploradas mais a fundo. ....o expositiva numa sala da Casa de Cultura, o trabalho evolui em percurso por trechos de calçadão, calçadas, faixas de pedestres, desaguando na sala de outro endereço, a Itajaí Criativa – Residência Artística.

Há paradas em que Pietra interage com objetos como um banco de cimento, uma bicicleta e o calçamento propriamente dito, sempre acompanhada e cercada de espectadoras e espectadores embarcados desde o início. Subentende-se estratégias de intervenção urbana que levariam em conta envolver ou atritar, voluntaria ou involuntariamente, o pedestre, o lojista, o ciclista, a família festiva que foi às compras, enfim, a gente que se pergunta (entreouvimos) o que se passa com essa turma seguindo uma mulher de tênis colorido e moleton com capuz preto, sob o foco de profissionais da fotografia e do audiovisual.

Na deriva de Cartografia do assédio sentimos falta de maleabilidade para contracenar de fato com os frequentadores do espaço público, historicamente postos à margem dos sistemas da arte e da cultura. A relevância do assunto, intuímos, passou incólume à maioria. Não descartamos que a frase de impacto numa cartolina erguida pelos braços de uma mulher seja, por si, capaz de afetar a recepção avulsa. Mas o corpo, aqui, foi menos veículo do que nas salas.

O percurso transmitiu a sensação de que circunscreveu seu olho no olho aos cerca de 40 espectadores que diligentemente a seguiram no encalço. Parcela deles estava situada no ambiente do festival que naturalmente contempla iniciados em artes cênicas. Como passar ao longo do calçadão e se deixar atravessar também pela mulher evangélica, para ficar num dos segmentos não convertidos à arte, alvo da guerra cultural em curso?


Pietra Garcia tem o olhar e a voz convictos de sua geração mais propensa a abraçar os feminismos incondicionalmente. Seu ímpeto juvenil move as mulheres que vieram antes dela no exercício dessa consciência, ou mesmo aquelas que ainda não atinavam e ora despertam, assim como porção não desprezível de homens. Sua presença dialoga com a das estudantes do ensino médio que recentemente lideraram ocupações em escolas e articulam-se em outras frentes.

A atuante ganha a cumplicidade das espectadoras que dão corpo a uma manifestação com cartolinas de protesto, observadas pela ala masculina simbólica e fisicamente apartada em algumas passagens. Prática de distanciamento que produz efeito sobre a percepção distinto da passividade voyeur e gera reflexão parelha à do Grupo XIX de Teatro (SP) em “Hysteria”. Naquele relevante espetáculo da década passada, a plateia era exclusivamente composta de homens enquanto as mulheres ocupavam literalmente o espaço cênico de um imóvel antigo no qual as atrizes viviam pacientes de um hospital psiquiátrico vítimas da ignorância dos dogmas religiosos e científicos à época, por volta de dois séculos atrás.

No primeiro momento, entre quatro paredes, Pietra nomeia em seu corpo o nome das entrevistadas, adultas ou menores de idade, que relataram as violências sofridas em situações cotidianas as mais prosaicas, como ir à escola ou à academia, ou naquele contexto em que a mãe orientara, por educação, dar bom dia a policiais que responderam agredindo verbalmente uma menina.

A geografia das ignomínias vivenciadas em locais e bairros itajaienses é simbolicamente confrontada na caminhada ao ar livre, como comentado há pouco. Já no desfecho, a artista acena com o depoimento pessoal, permitindo ao público construir o elo cidade-atuante (a infância e a adolescência nem tão distantes) com o projeto que, sugere, lhe foi transformador. Ela enfrenta o patriarcado exercendo sororidade com as vozes que reverbera na performance. E devolve a própria jornada interior lutando pela indissociabilidade dos direitos humanos.

***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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foto by Lenon Cesar
Este obscuro objeto do desejo

por Luciana Romagnolli

Agora já é passado. Quando escrevo estas palavras, “Índice 22” já se encerrou no tempo cronológico. Até que se refaça em outra noite de apresentação, a peça da Téspis Cia de Teatro é passado, morto. Ao mesmo tempo (o outro, o tempo subjetivo) faz-se presente reavivado em minha memória consciente e, talvez, inconsciente. O que essa efemeridade diz da realidade da experiência e de sua permanência? A companhia catarinense perscruta as dobras escuras da mente no solo de Denise da Luz, escrito e dirigido por Max Reinert. Faz da cena o cárcere obsessivo de uma subjetividade presa a uma espiral de ruminações. Angustiada por essa hipertrofia do pensamento, clama por que algo aconteça. Mas o que acontece é o próprio pensamento, que se faz ato e repetição.

Tentado a compreender o mundo fora e dentro de si (um modo do ego dominá-lo), entrega-se a uma investigação reflexiva sobre o mal e o gozo em tempos de destituição subjetiva e sadismo compartilhado pelas redes sociais.

A linguagem psicanalítica ensaiada nesta crítica serve à tentativa/tentação de abrir uma fresta para a luz na opacidade da cena armada pela companhia, sem reduzir as suas indeterminações e indagações a afirmativas e pretensas respostas. Fazer, talvez, pulsarem mais algumas inquietações.

Índice 22” tem essa qualidade magmática de compostos voláteis em estado variável de fusão, que se acumulam sob alta pressão e temperatura e extravasam em erupções. Metáfora para o sofrimento psíquico que a encenação tangencia por meio do corpo da atriz, do corpo da tela, dos instrumentos musicais, do corpo da luz e do corpo das palavras. “O cenário era um bisturi penetrando na pele. Não, o cenário é a pele”. Ecos.

Estalos

Nas primeiras imagens, sob uma paisagem sonora de nomes próprios, a luz se decompõe em camadas sobre a pele da atriz, que estala violentamente uma baqueta contra a superfície de uma caixa percussiva (cajon), produzindo batidas graves. Como um demônio narcísico de olhar perverso que se satisfaz com o acúmulo de excitações de uma cena em caos sinestésico.

Adiante, essa cena convulsionada encontra paralelo numa espécie de infecção hacker que faz tremer os pixels e destrincha as cores dos textos projetados. A materialidade cênica colapsa ante as contradições da sobreposição: uma descrição sensorial em primeira pessoa de um ato de violência sofrido é recoberta por palavras conhecidas de julgamento e culpabilização da vítima.

É impossível situar se essa disputa de vozes ocorre num tribunal, numa rede social ou dentro da mente de alguém. A dramaturgia se tece na indeterminação do sujeito e nessa multiplicidade de cenários em simultaneidade.

Cenários extremos de violência e perversidade, aludidos por ruídos e nervos e vísceras autopsiadas. A(s) voz(es) subjetiva(s) encarnada(s) em Denise transita(m) entre esses destroços atormentada(s) pela ambivalência de um “prazer sofrido”. Paira a noção lacaniana de gozo como essa superposição de prazer e desprazer.

foto by Lenon Cesar

Num palco amealhado de vestígios de narrativas interrompidas, a cena teatral ecoa a cena da fantasia subjetiva do obsessivo. O discurso cênico, em certo momento, faz-se como fala em transferência analítica. Como um ego aprisionado a esse frenesi narcísico do repisar da própria dor, debate-se contra o trauma como definidor de toda uma identidade. As descargas de energia excedente em ruídos e contrações impedem que o sistema se aniquile. É armadilha da qual não se escapa.

Então, o fazer e refazer próprio do teatro, ressuscitado a cada nova apresentação, se assemelha a essa compulsão à repetição. Repetição daquilo que extravasa a economia psíquica e, por isso, não cessa de acontecer no tempo subjetivo. A atriz que repete noite a noite a corporificação de uma ficção diante de um público manifesta uma espécie de revivência do trauma, como quem, recusando a perda/morte, tenta/é tentada a estancar o tempo para manter aberta a ferida.

A Téspis desce a esse obscuro abismo intrassubjetivo de estranhos objetos de desejo determinada a sustentar a insegurança de não se firmar nas certezas e reafirmações. Encontra o desafio de uma encenação do impalpável e do incomunicável que não se encerre em um autocentramento nem se torne obstáculo à escuta e à relação intersubjetiva. A sinestesia da cena funciona como esse bisturi que pode rasgar a pele entre palco e plateia quando as ruminações da angústia se tornam inacessíveis em sua autorreferência narcisista. O risco remanescente é de um ataque aos sentidos que os sature de uma mesma tonalidade sombria, obliterando a percepção.

Então, quais modulações rompem a gravidade? Como dar corpo cênico às contradições da perturbação psíquica? E como encenar a dor não tal qual paisagem que se observa afastadamente, objeto alheio, mas brecha à travessia sensível entre sujeitos?

***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

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foto by Lenon Cesar
A menor distância entre o mal e o sensacional

por Valmir Santos

A dramaturgia e a direção de “Índice 22” emanam movimentos ambíguos ou, quem sabe, complementares, como o pulmão em sua sina vital de expandir e contrair o ar. Max Reinert assina e opera essas tarefas como arte total, à medida que também concebe a cenografia e a iluminação para o solo de Denise da Luz, da Téspis Cia. de Teatro, cuja qualidade de presença em cena demarca um lugar de coautoria no resultado do trabalho.

O texto cria interseções surpreendentes com um conto do historiador e antropólogo potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), “A menina enterrada viva”, publicado em “Contos tradicionais do Brasil” (1946), na sessão “Natureza denunciante”.

Referência na pesquisa e recuperação da oralidade das lendas, o folclorista Cascudo narra a história da criança assassinada pela madrasta. O pai fica triste, é enganado de que ela fugira de casa, até o dia em que contrata um homem para capinar o terreiro e este ouve a voz da menina vinda do chão, entoando uma cantiga.

O conto está publicado no programa de mediação do espetáculo com o público – uma boa sacada para a experiência de navegar por zonas como que criptografadas do projeto, a começar pelo título, cuja chave estranhamente não é compartilhada.

Foi preciso consultar um buscador online para saber que, inferimos, “Índice 22” remete ao teto da escala proposta nos anos 1990 pelo psiquiatra estadunidense Michael Stone, após longo estudo acerca da personalidade de criminosos. Para classificar comportamentos brutais que nem a medicina nem a psicologia explicavam a fundo, ele propôs uma gradação que vai do índice 1 (pessoas que matam em legítima defesa e não apresentam sinais de psicopatia, por isso são consideradas normais) ao índice 22 (psicopatas assassinos fixados em torturar as vítimas com motivação de cunho sexual). A peça toca no quanto o aparente prazer sofrido por uma vítima chama a atenção do mercado de cliques.

Ao interlocutor do espetáculo não é dada margem para interpretar, essa tentação de agarrar-se a unidades de tempo e espaço. Não há “era uma vez” no fluxo de consciência dessa voz por meio da qual os criadores ambicionam discutir sobre como a internet amplifica a banalidade do mal no século XXI, para lembrar da responsabilidade individual que a filósofa Hannah Arendt problematizou no modo como o nazismo foi engendrado na Europa.

Denise e Reinert excitam o imaginário da plateia com outras possibilidades de significação que não apenas pela via do verbo. A peça é labiríntica feito uma incursão anatômica pelas cavidades do organismo humano. O corpo é pungido por quem é torturado e abduzido pelo seu algoz. Já o que baila pela cabeça são pensamentos perturbadores ou capazes de produzir verdadeiras sinapses.

A perversão espelhada no conto popular materializa-se numa dramaturgia cirúrgica, propulsora de poética a seco no modo de processar dados da realidade à luz da virtualidade da vida contemporânea. A escrita trava embate com a permissividade no território da web, combinando cenários do noticiário com subjetividades do desejo e do ódio.

foto by Lenon Cesar

No início, o discurso fragmentado soa mais apoiado na corporeidade. Denise faz as vezes de caixa de ressonância das incertezas do que passou ou está por vir. O gesto ecoa e as falas permitem vislumbrar um elemento de psicoacústica (na frequência e amplitude), em consonância com a paisagem sonora e a expressão física. Sensorialidade introdutória dos estados performativos que vão se adensando até o fim. Apesar da partitura sólida, a constante temática de “Índice 22” é a instabilidade. As frases sobrepostas na projeção que atravessa o corpo de Denise transmitem saturação. Textura que remete à imagem de Isabelle Huppert estática e transpassada por raios de números e palavras em “4.48 Psychose”, da inglesa Sarah Kane, dirigida pelo francês Claude Régy e apresentada no Brasil em 2003.

Na montagem da Téspis há momentos vertiginosos que se aproximam da realidade em 3D pela cintilação no desenho de luz. É quando se intensificam ares de miscelânea ou de “mash up”, a mistura musical de faixas instrumentais ou vocais muito comum nas mãos de DJ. Em vez da multidão na pista, temos a vocalização de um ser para tanto mal-estar.

Quando a atmosfera turva atenua, a transmissão de uma “live”, na qual a fala chega mais compassada e predisposta a ser ouvida, o espectador haverá de reestabelecer as bases com a atuante em seu domínio técnico-corporal para desvencilhar-se do emaranhado que a encenação a enreda.

O tempo real da transmissão e o crescimento de “likes” na proporção da camada de dramaticidade daquele instante configuram os mecanismos de apelo às premissas espetaculares da audiência na internet. O sensorial confunde-se com o sensacional. E assim o movimento oscilatório da obra e seu questionamento crítico sobre as relações tão fluídas quanto brutais assentam-se nessa conversa franca com a tradição do relato de caráter maravilhoso e o desespero que bate quando se vê o futuro de perto, cínico.

***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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foto by Carolina Copello

Ah, insensatez, um amor tão delicado

por Luciana Romagnolli

É a menina Lizzie quem diz ao pai para que vá tomar banho. Distraído da rotina básica do dia a dia, ele não corresponde a um ideal de masculinidade ou de maturidade culturalmente associado à figura paterna. É um homem sensível e sonhador, desses com a cabeça à deriva pelas nuvens.

Nessa inversão de papéis urdida em "Meu pai é um homem pássaro", cabe à menina de pés no chão chamar a atenção dele outra vez à terra. Um gesto importante diante do que olhos científicos poderiam diagnosticar como uma depressão daquele homem que come minhocas após a partida da esposa/mãe – ou alguma outra tipificação para tal abalo na sanidade.

Essa abordagem dos afetos e cuidados envolvidos em uma relação entre pai e filha, no contexto nada romantizado de uma situação de perda compartilhada e de fragilidade paterna, colocam a peça apresentada pela Cia Experimentus Teatrais, de Itajaí, num lugar interessante e incomum de elaboração artística de experiências subjetivas delicadas para pequenos e grandes.

Na dramaturgia criada a partir do romance homônimo de David Almond, a fantasia entra como uma forma de tornar mais leve um mundo que não preserva as crianças de dificuldades e responsabilidades desproporcionais ao seu tamanho, acreditando na inteligência e na sensibilidade delas. Seja a de Lizzie, seja a do público de seis anos adiante.

Enquanto a fantasia de voar infla os sonhos e repara as conexões familiares abaladas pela ausência materna, a história também põe em choque no universo adulto duas concepções de mundo distintas: uma pragmática, realista, objetiva, quiçá cética, representada pela figura da Tia Doreen (nome que soa como “Diadorim” muitas vezes, numa involuntária homenagem a Guimarães Rosa e à desestabilização dos lugares de força entre o feminino e o masculino em “Grande Sertão: Veredas”); outra lúdica, romântica, visionária, quiçá escapista, encarnada pelo pai.

A razão entre elas no discurso cênico é explicitada em uma placa sobre o palco: “Sonhar pode”. Que não se imagine, porém, essa como uma licença para evadir-se em ingênua utopia. O belo em “Meu pai é um homem pássaro” reside nos contrapontos sensíveis de um destemor do fracasso e de uma solar melancolia.

Essa alegria gotejada de desalento habita especialmente a primeira metade da peça. O humor pontuado em gestos, frases e sons não anseia por respostas exaltadas da plateia. Abdica-se do tom esfuziante (sobretudo das falas infantilizadas) e da hiperestimulação comum a produções feitas para crianças pautadas por lógica espetacular sensacionalista, como muitas franquias de sucesso comercial entre esse público. A paleta de sentimentos partilhada em “...Homem pássaro” abraça mais cores e permite que, junto à euforia (como se vê em reações à atuação de Daniel Olivetto), as intensidades brandas apareçam.

foto by Carolina Copello
Dessa forma, o trabalho concebe uma criança-espectadora também suscetível a uma amplitude maior de experiências sensíveis e afetivas. E esse não é mérito exclusivo do texto. A encenação da companhia Experimentus orquestra uma harmoniosa composição colorida pela teatralidade das muitas dimensões materiais de elaboração da cena.

Em consonância com a música ao vivo, sobressaem o divertido jogo da sonoplastia teatralmente executada aos olhos e ouvidos da plateia e a animação de objetos inesperados (como um saca-rolhas) para representar os competidores ao desafio de voar. Compartilha-se, assim, um pouco do modo de construção da fantasia.

Eis a reafirmação do discurso cênico de que o sonho não precisa ser uma ilusão cega às propriedades concretas da ação humana e suas vulnerabilidades. Tão palpáveis, precárias e repletas de potencial como as asas de tecido que vemos enquanto se enumeram as tecnologias mais ostensivas dos concorrentes a uma disputa aérea. “...Homem pássaro” restitui outra dimensão de grandeza ao humano.

A estimulação que interessa a esse projeto cênico para todas as idades, então, é a que pressupõe seres curiosos e em constante processo de descoberta, como são as crianças (e os adultos?), à imagem do melhor que o pai-corvo pode inspirar.

Na apresentação realizada na Casa da Cultura Dide Brandão, dentro da programação do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha 2019, talvez pela acústica do ambiente, talvez pelo volume da projeção de voz do elenco, a escuta ficou no limite da compreensão em alguns momentos. Independente disso, na presença de um público em parte mais novo do que a faixa etária à qual se direciona o trabalho, a companhia atraiu os olhares e fisgou atenções concentradas para a fábula agridoce sobre a sensatez de sonharmos juntos.

***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

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foto by Carolina Copello

Da sutil e revolucionária arte de erguer as pernas para o ar

por Valmir Santos

Estranhamento e profundidade, sabemos, são perfeitamente conciliáveis na arte afeita às crianças e adolescentes. A Cia. Experimentus provê o público dessa premissa no espetáculo “Meu pai é um homem pássaro”, adaptação coletiva do livro de mesmo nome do britânico David Almond (“My dad's a birdman”, de 2007, editado no Brasil pela Martins Fontes).

No enredo, uma menina estudante pactua da fantasia do pai de voar. Há pouco ela havia ficado órfã de mãe e ele, portanto, viúvo. A fábula gravita a disposição, primeiro dele, depois endossada pela filha, de participarem de uma inusitada competição da comunidade onde vivem e que instiga as pessoas a tentar a proeza de sustentar-se no ar feito ave humana.

A decisão de se inscreverem, os preparativos para encontrar o melhor método propulsor movido a “asas e fé” e a oposição de uma tia que vê no pai um amalucado e na filha, “miolo mole” (fica testando se ela sabe somar, multiplicar, soletrar) são os conflitos mais terrenos, pois a peça é profícua em outros nexos simbólicos, existenciais, inclusive da ordem da fenomenologia do espírito na busca do conhecimento de si e da natureza humana.

O texto tem lastros do mito grego de Ícaro, filho de Dédalos, este um notável arquiteto e inventor. Segundo o relato secular, eles foram encerrados num labirinto a mando de um soberano. O pai bolou asas artificiais atando as penas soltas dos pássaros que sobrevoavam o local. Untou o aparato com espessa camada de cera. E assim eles voaram para fugir do cárcere. Ícaro, porém, não atentou à recomendação paterna para que não se aproximasse muito do sol. Daí o par de asas derreteu e ele caiu, morrendo afogado.

Transpondo a mitologia para os dias de hoje, Almond desmonta para os leitores e espectadores a bomba-relógio do imperativo da competitividade. No mundo em que a propaganda diz que estar preparado é tudo, a tônica corporativista invadiu o convívio interpessoal, pior, a artificiosa hiperatividade familiar à qual a prole logo é induzida.

A história reaviva a máxima de que é mais importante competir com dignidade do que vencer, atribuída ao pedagogo francês Pierre de Coubertin (1863-1937), que aproximou o aprendizado da prática esportiva e foi o pai dos Jogos Olímpicos da era moderna.

Essas coordenadas éticas-filosóficas brotam com naturalidade da singeleza da narrativa e são plenamente contempladas na direção de Daniel Olivetto. As atuações passam ao largo do registro infantilizado e a musicalidade é um trunfo da dimensão do sutil.

foto by Carolina Copello

Cia. Experimentus alcança uma inventiva teatralidade das miudezas para entregar uma experiência maiúscula ao público infantojuvenil e aos pais e responsáveis, como na sessão de plateia cheia e compenetrada no teatro da Casa da Cultura Dide Brandão.

Uma pequena flâmula vermelha com a inscrição “Sonhar pode” é afixada numa das partes do cenário e saúda a intervenção que o artista plástico e poeta Mauro Caelum (1958-2016) fez em diferentes pontos de Itajaí com esses dizeres.

A caixa de ferramenta vira lancheira da aluna que ruma para a escola. O lençol do varal cenográfico inteiriço estende-se ao tablado, fundindo chão e céu. Uma piscina infantil é convertida no rio que os seres humanos alados vão tentar atravessar. O mesmo tanque plástico e colorido vira ninho em que pai e filha brincam com as pernas para o ar ou fazem das mãos pássaros sem as tradicionais sombras da contraluz.

E a imaginação voa longe ainda com os objetos não convencionais que os atores usam para a base percussiva das passagens incidentais ou das canções em violão, voz e lirismos de Natália Pereira, que divide as composições com o diretor musical Rafaelo de Góes (“Voei/ Foi tão real/ É que quando se sonha/ Posso ser corvo ou pardal”, diz uma das letras).

Ressalvadas escorregadelas na projeção da voz naquela tarde, o elenco garante a cadência de sentidos e de intencionalidades em momentos como o do pai Jack (por Marcelo F. de Souza) engolindo uma minhoca e deixando a audiência em suspenso. Da filha Lizzie (Andréa Rosa) invertendo expectativas e fazendo ponderações adultas ao pai. Da tia Doreen (Sandra Knoll) recuando da ranhetice e compreendendo o outro que pensa diferente dela. E do diretor da escola Mint (Olivetto), figura de autoridade também contaminada por quem sonha.

***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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foto by Carolina Copello

Erro encena a nossa falta de estratégia

por Luciana Romagnolli

Performers são, antes de tudo, complicadores culturais. Esta frase de Eleonora Fabião, impressa em um artigo sobre a potência da performance em ativar o paradoxal de estar vivo, faz pensar em “Jogo da guerra” como uma complicação. Com esse trabalho, o Erro Grupo, em atuação desde 2001 em Florianópolis, cria uma série de complicações de ordem estética, ética e política, que desestabilizam não somente noções de ficção e real, e de espectador e performer, mas, sobretudo, a eficiência e a validade das estratégias de ação política progressistas em curso. Inspirado pelo movimento de Maio de 1968, na França, e pela obra homônima de Guy Debord, “Jogo da guerra” assume o estatuto de arte ativista, organizada como um jogo cênico de guerrilha urbana que acontece em três frentes, duas delas na rua. Arte ativista no sentido desta que adota uma perspectiva crítica ao sistema produtivo capitalista e promove uma ação prática, vinculada a um lugar e em compromisso com a realidade. Como ao reunir grupos de espectadores para planejar ataques a pontos-chave da violência institucional vigente.

O público se separa entre os três núcleos onde se concentram os atores do grupo e experimenta perspectivas distintas do jogo, sem que um saiba a do outro (as da rua se encontram; a da sala, segundo relatos, acompanha as ações por falsas redes sociais). Isso afasta qualquer possibilidade de apreensão da totalidade do projeto em uma única execução, como ocorreu no Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, em Itajaí.

Ao chegar à concentração em frente à Casa da Cultura, no fim de tarde de terça-feira, os espectadores atraídos pelo canto das atrizes Luana Raiter (também dramaturga, ao lado do diretor Pedro Bennaton) e Rachel Seixas logo se viam em uma formação de roda, atrás de uma barricada de papelão, questionados sobre o porquê de estarem ali. “Estou ficando doente, estou exausta”, diz Rachel. Com essas vagas palavras, alude a um sentimento comum diante da situação política brasileira. Mais que isso, cabe a cada espectador intuir.

A forma de convite à participação pouco desfaz a timidez inicial de um público surpreendido pela maneira como desavisadamente é posto dentro de uma narrativa como se fosse – e passa a ser – parte propositora dela. A partir daí, será instado a mostrar o que trouxe de útil para a guerrilha urbana e a escolher os alvos e as formas de ação.

Na situação presenciada em Itajaí, o local escolhido foi uma igreja católica, após poucas sugestões e um brevíssimo debate de ideias restrito a falas de Luana (não) e Rachel (depende da situação) se pegariam ou não em armas, ao que uns espectadores responderam com movimentos negativos de cabeça. A discussão sobre o que fazer na igreja tampouco avançou até chegarmos lá.

O que se segue é, até certo ponto, específico dos acontecimentos do dia 7 de maio, em Itajaí, e pode ou não encontrar ecos em outras “apresentações” conduzidas pelo grupo. Eis uma das complicações que o Erro ativa. Sua forma é liminar, habita a imprecisão de zonas transitórias entre formatos conhecidos. E sua proposta de construção coletiva com o espectador, ungido à dupla posição de agir e observar, abre-se à imprevisibilidade das escolhas que serão feitas, e que se somam à já imponderável pulsação da rua.

Afinal, “Jogo da guerra” é teatro na rua, feito diante de trabalhadores e passantes alheios ao caráter artístico daquelas ações. É teatro imersivo, à medida que o espectador se encontra em relação direta (realizar uma manifestação ou ataque) com um ambiente no qual está fisicamente imerso (as ruas do centro da cidade). É artivismo, conforme previamente argumentado. É acontecimento cênico, estética e dramaturgicamente elaborado a partir de uma proposição ficcional silenciosamente pactuada com o público (algo como “e se nos encontrássemos para a guerrilha urbana?”). E é acontecimento na realidade, capaz de ferir o corpo da cidade e de seus habitantes. À porta da igreja, uma das atrizes gritou palavras como quem devolvia uma violência sofrida. Alguém decidiu escrever no chão, em carvão: “parem de nos matar”. Outro, que ainda não sabíamos ator “infiltrado” como espectador subversivo e pronto a radicalizar as ações, começou o preparo de uma bomba em uma panela de pressão e foi impedido. Isso descreve minimamente o que se passava dentro do grupo que formamos.

O que se passava ao redor era tratado como paisagem humana. Se fosse teatro, seriam cenário e figurantes. Até que uma mulher se aproximou e interrompeu a ação aos gritos de “na porta da minha igreja não!”. A ferida que se abriu não foi só da ordem da ficção. Um embate extremamente duro com uma pessoa que concentra em si imagens mais contraditórias do nosso tempo: ser mulher, ser negra, ser trans, ser devota, ser autoritária e contrária à cena coletiva armada contra ameaças a liberdades de corpos como os dela.

foto by Carolina Copello


O jogo nos coloca diante das complicações do nosso tempo. De perguntas sobre como combater uma ideologia fascista que ascendeu ao poder de forma antidemocrática, cooptou cidadãos de todos os estratos sociais e, dia a dia, deturpa as narrativas sobre o que é violência.

Para aquela mulher, a violência era o “desrespeito” à igreja, e a arte não tinha o direito de chegar até ali. Cabe notar que sua reação, de censura e intolerância, foi inflamada pela não compreensão de que a insinuação da construção de uma bomba era “teatro”. Ela reagia à bomba diante da igreja, que pareceria violenta e injustificável a muitos outros de espectros políticos menos extremos que o dela.

Diante da situação ali armada, de ânimos acirrados, as atrizes e o grupo rumaram a outro ponto de ataque constando o fracasso da ação. As respostas aos questionamentos sobre o recuo indicaram a ansiedade em agir. “Vamos fazer qualquer coisa”, dizia Luana, dentro de uma lógica de menos conversa, mais ação. “Não dá para esperar unanimidade”. Atribuir essa fala à atriz pode significar incorrer no mesmo erro de acreditar que o ator infiltrado era “só” um espectador. Ao mesmo tempo, tratar como "personagem" parece limitado do ponto de vista da performatividade do trabalho e da efetividade de suas ações no espaço público.

Possivelmente, a fala dela, assim como a atitude dele, compõe um quadro dialético no “Jogo da guerra”, à qual os espectadores haverão de reagir. Contudo, a posição de propositoras e condutoras do jogo ocupada pelas atrizes, somada à falta de cumplicidade entre o público recém-reunido, não permite uma dinâmica totalmente desierarquizada na qual seja factível opor-se a elas e instaurar outra forma de ação.

Pessoalmente, algo se perdeu nesse caminho: a adesão à participação, facilmente conquistada pela constatação de um “comum” entre aquelas pessoas, baseado na revolta diante da situação política, foi substituída por um sentimento de repulsa às ações daquele coletivo. O fracasso é da possibilidade de uma ação conjunta que não atropele eticamente os participantes. Fracassamos em formar um “Nós”, com uma mínima, mas determinante, pauta em comum, que sustente (inclusive eticamente) as ações.

Talvez se a ficção sobressaísse, e a sensação de reencenar um longínquo Maio de 1968 em maio de 2019 prevalecesse, essa urgência tivesse a força de uma reação à ameaça à vida em situação fictícia de guerra instaurada. Entretanto, a proximidade dessa suposta ficção com o contexto brasileiro atual, à espera de uma mobilização popular efetiva para impedir a continuidade da devastação econômica e social instalada, situa o “Jogo da guerra” muito numa zona mais indiscernível de uma experiência real. A essa sensação, a reação à porta da igreja reforçou.

Como continuar, então? Como deixar para trás a situação de confronto real que se instaurou naquela calçada? Que a(r)tivismo é esse que abandonou a crença no diálogo? Quem são os oponentes, a mulher à porta da igreja ou os detentores dos cargos de poder? A quem se direciona a ação, aos que aderem ao comando “estou exausta” ou aos que apresentam resistência? Que imagem se constrói para o público não intencional? Quem sai enfraquecido? Como prever estratégias para que um teatro feito na rua não se aliene do que acontece na rua?

A dramaturgia de “Jogo da guerra” evidentemente não busca o “sucesso” da operação. Ela trata do fracasso, das incertezas, das hesitações, das limitações – como a despedida de Luana com a justificativa de “buscar o filho na escola”. Tal como a “Escola” de guerrilheiros representada pelo diretor chileno Guillermo Calderón em palco italiano em festivais brasileiros, a intervenção urbana do grupo catarinense faz da rua essa experiência preparatória para um devir.

Para além de um fracasso ensaiado, o Erro encena nossa falta de estratégia, enquanto oposição, a formar um “Nós” capaz de dialogar no dissenso e manter sua força de mobilização, pactuando prioridades, linhas de ação e modos operacionais para agir contra a subtração de nossos direitos civis. Faz pensar nas estratégias que temos assumido, na política, de isolamento em bolhas supostamente consensuais. E no risco – alertado por Manoel Delgado – de que a barca do artivismo acabe se rompendo contra a mesma vida cotidiana que aspirava a romper.

Complicações.


***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

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foto by Carolina Copello
Para engordar as próprias vontades

por Luciana Romagnolli

Sozinha com sua imaginação, Raquel tenta descobrir o que fazer com as três “vontades” secretas que não cessam de engordar a cada vez que não se realizam. Crescer. Ser menino. Escrever. A breve jornada de formação da protagonista de “Bolsa Amarela” a fará descobrir que duas dessas vontades não brotam realmente dela.

São reações a uma maneira de se lidar com a infância regida pelas relações de poder que estruturam as hierarquias do patriarcado – resumidamente: adultos podem, crianças não; homens podem, mulheres não. Só ao conhecer outro modelo familiar é que a menina se autoriza a realizar a terceira vontade. Esta, sim, sua.

Para recriar o clássico homônimo da escritora Lygia Bojunga, o Grupo Teatral Porto Cênico desdobra Raquel em duas vozes, corporificadas pelas atrizes Aline Barth e Caroline Carvalho. Embora essa bipartição possa representar o conflito interno da personagem, a relação entre elas frequentemente é de complementaridade, como um diálogo cúmplice entre a consciência de uma criança e sua imaginação.

Esse jogo de vozes confere dinâmica e teatralidade ao monólogo interior. Outro aspecto importante da composição cênica é a dramaturgia de objetos, que subjaz os discursos gerando sentidos complementares. É o caso da cadeira e da bolsa de medidas ampliadas, que redimensionam os tamanhos dos corpos das mulheres em cena em meninas. Ao mesmo tempo, reverberam a imagem reiteradamente aludida no texto de coisas que “engordam” à medida que a vontade delas aumenta.

Há ainda outros objetos que também se metaforizam personificando desejos infantis, tal qual o “fecho com vontade de enguiçar”. O mundo de Rachel é o das coisas que dizem além de seus sentidos imediatos. É dessa maneira que a escolha dos materiais para representar irmãos, pais e outros personagens semeia possibilidades de leituras que intensificam as questões que afligem a personagem.

Ao substituir um irmão por uma bola, ou a mãe por agulhas de tricô, o grupo oferece uma operação metonímica estimulante à imaginação das crianças. E joga com as representações sociais desses papéis familiares quando os objetos associados aos integrantes da outra família que Raquel há de conhecer não correspondem aos preconceitos de gênero como os da sua casa.

foto by Carolina Copello

Assim como “Meu pai é um homem pássaro”, espetáculo em que atua o diretor de "Bolsa amarela", Marcelo F. de Souza, também apresentado no Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, a concepção de infância em cena corresponde a uma valorização da autonomia de sentimento e pensamento da criança, com respeito às suas opiniões e ao seu corpo, reconhecendo sua inteligência para compreender de maneira crítica o mundo ao seu redor.

Essa visão crítica se explicita, por exemplo, quando a menina questiona o costume adulto de empregar diminutivos ao se dirigir a ela: “Por que eles botam ‘inho’ em tudo e ficam falando com essa voz bobalhona”?, queixa-se ao público. Na maior parte do tempo, a peça cuida dessa economia discursiva avessa às facilitações que subestimem seus interlocutores, qual seja a idade. Caso do cortante desabafo de Raquel: “Acho fogo ter nascido menino“. Curto e direto, ele manifesta pensamento comum – e frequentemente reprimido – em garotas submetidas à opressão de gênero.

Quando o jogo cênico é a garota representar os outros personagens ao seu redor, personificados nos objetos, algumas vezes a fala se demora em uma cadência pausada com inflexões muito marcadas, como as que incomodam nos adultos. Ainda que essa prosódia contenha a ironia da imitação do que ela ouve deles, torna-se uma forma recorrente de comunicação em cena.

Diante do espetáculo, então, algumas vontades de espectadora também podem engordar. Uma delas é que as partituras vocais e de ações da animação de objetos espelhem a criatividade empregada na atribuição de sentidos a eles, com execução rigorosa. Especialmente para a manipulação do galo, cujo boneco galináceo de tecido não carrega metáfora como outros objetos manipulados em cena, tampouco é articulado como um títere, de modo que se torna um desafio dar-lhe a mobilidade e a expressividade que as muitas contracenas com Raquel solicitam.

A certa altura, o galo revela ter fugido do galinheiro por estar cansado de dizer às galinhas o que elas devem fazer. Ele representa, a seu modo, a contraparte de Raquel, a quem todos querem regular o como agir, e um elogio à autonomia de cada pessoa, pequena ou grande, para realizar seus desejos.

Raquel tenta distinguir a si mesma entre as narrativas que o mundo adulto despeja sobre ela, para identificar de quais desejos não se pode soltar e ter a coragem de seguir com eles. Quiçá inspire o público a carregar da infância para a vida adulta a bolsa mais leve possível, sem tantas repressões.


***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

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foto by Carolina Copello

Como operar na verdadeira bolsa de valores?

por Valmir Santos

Não necessariamente nessa ordem, as vontades de crescer, de ser escritora e ser menino – pois tudo no mundo dos adultos reafirma os privilégios dos homens sobre as mulheres – fazem da história da narradora e protagonista Raquel uma jornada infantil peculiar em suas reflexões demasiado humanas. 

Pois o pacote do espetáculo “Bolsa amarela” é mais amplo ainda. A dramaturgia elaborada a partir do romance da gaúcha Lygia Bojunga, “A bolsa amarela”, publicado em 1976, abarca não apenas a pauta do feminismo mais saliente, incontornável na vida contemporânea, como questões de desigualdades sociais e econômicas infelizmente ainda aflitivas no contexto brasileiro 43 anos depois. 

Há a criança driblando o quadro socioeconômico em que está inserida, imaginativa, propositiva e inquieta no desenvolvimento de seu caráter. Raquel cultiva desde cedo a perspectiva crítica em muito diferente de práticas e posicionamentos desrespeitosos de familiares mais próximos e não menos amados por ela. O exercício dessa história injeta autoestima em quem se identifica com a idade e convida a colocar-se no lugar do outro às vezes postado debaixo de seu nariz e sob o mesmo teto.

Muito pertinente, portanto, a iniciativa do Grupo Teatral Porto Cênico de incluir esse trabalho no repertório que vem construindo em Itajaí desde 2004.

A dramaturgia e adaptação de Marcelo F. de Souza (que também atuou em Meu pai é um pássaro neste 6º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha) multiplica Raquel em duas vozes com as interpretações de Aline Carolina Barth e Caroline Carvalho.

Isso valoriza a subjetividade do pensamento altamente sofisticado dela, afeita a sínteses inspiradoras quando conversa com seus botões ou, por outra, nutre curiosidade e se pergunta a todo instante sobre as atitudes dos parentes quanto a seu jeito de ser, sentir e agir nos primeiros anos de formação.

Os pais, os irmãos mais velhos, a tia e um primo insistem em tolher suas vontades e desprezar sua inteligência, tratando-a com infantilidade quando sua percepção dos acontecimentos e dos comportamentos torna-se mais aguçada pela sensibilidade nata ou adquirida no convívio da escola – espaço recuado na narrativa do livro para servir ao retrato do cotidiano doméstico.

É na casa dela, ou melhor, no interior da cabeça dela que a imaginação reina solta e os criadores encontrariam terreno fértil para desenvolver uma teatralidade que fosse tão ou mais libertária quanto o tino da menina. Contudo, as ideias e os fazeres não se encaixaram nesse quesito.

Dentro das formas animadas, objetos e bonecos são acessados pelo Porto Cênico para dar asas aos amigos imaginários com os quais Raquel expõe e reelabora seus conflitos. E para tanto ela tem a cumplicidade dos leitores e espectadores, no caso. O uso dessa técnica na montagem macula o espírito da manipulação, coronário na modalidade teatral visitada.

foto by Carolina Copello

O veterano Grupo Sobrevento (SP) costuma afirmar que a manipulação, em si, não deveria ser o motor da ação, mas o corpo de quem possibilitaria dar a ver o ponto de mutação por meio do qual o boneco ou o objeto se emancipam – tal qual o processo de autoconhecimento explanado pela narradora e personagem.

A evolução do apaixonamento do galo Rei/Afonso (boneco) pela Guarda-Chuva (objeto), por exemplo, tem seu encanto afetado quando são notados gestos e movimentos mecânicos.

Ao serem retirados do fundo da sacola agigantada de modo a ganharem voz ou sentido atribuídos pela menina – verdades verdadeiras para o público embalado pela história do lado de cá –, o galo e “a” Guarda-Chuva oscilam em suas potencialidades expressivas. Idem para a mímica ligeira das pipas que não sugerem o tempo para que sejam observadas as linhas de quem empina com as mãos, ou para que se desenhassem num céu hipotético as raias e rabiolas.

O artigo “a” bolado pela própria autora para Guarda-Chuva abre uma janela auspiciosa para se pensar os lugares de gênero e da brincadeira com a linguagem, ao que o grupo endossa. Há mais mistérios entre linguiça e enguiça do que sonha a vã imaginação.

A sobriedade das cortinas da cenografia tende ao universo despojado da família, mas soa um ambiente artisticamente frio para o público a que se destina. Já a desproporcionalidade da cadeira e da bolsa-título em seu design ficcionalizado as retira da inanição de origem e cumpre tabelinha com o espírito das coisas como elas deveriam ser segundo a Raquel.

***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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foto by Lenon Cesar
A eterna novidade do mundo

por Luciana Romagnolli

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
(Alberto Caeiro)

A figura masculina alta e esguia, com um livro-chapéu vermelho sobre a cabeça e um terno repleto de desenhos que parecem hieróglifos, inaugura um mundo fantástico quando adentra o espaço com sua também estranha bicicleta, de formas incomuns. O ordinário do cotidiano dissipa-se a cada movimento de investigação e assombro desse menino grande diante do que o futuro traz. Abandonada a razão prática da vida, aviva-se a sensação iminente de que qualquer coisa pode acontecer.

São os olhos curiosos do ator Mauro Filho os guias para essa deriva imaginativa entre os caminhos desabrochados no espetáculo “CaÊ”. Sempre expressivos, atentos às sutilezas das coisas e dispostos a se surpreender, eles concentram muito da “narrativa” que faísca nos encontros do personagem com vestígios do mundo criativo do artista visual Mauro Caelum (1958-2016), pai do ator.

Mais que render um tributo à poética daquele artista, a Karma Cia. de Teatro, da qual faz parte o filho, transforma a herança paterna em substrato para novos arrebatamentos na criação teatral para crianças. Essa travessia entre o universo adulto e o dos pequenos é cumprida como se “CaÊ” reinventasse as possibilidades de uma visita a uma exposição de arte transformando esse encontro na fabulação de um mundo onde as peças habitam.

O renovado espanto diante de cada uma delas instaura uma sensibilidade comum à obra de outro “Caê” – Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa), tal qual sintetizada em versos de seu poema “O meu olhar é nítido como um girassol”. “Sei ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras.../” Eis um olhar de criança, de poeta, de artista, de filósofo: destes que nunca sossegam de surpreender-se e revirar as coisas, e talvez por isso incomodem tanto os burocratas e suas verdades perfeitas.

foto by Lenonn Cesar

O diálogo entre as artes gera um espetáculo multimídia e multissensorial. O diretor Max Reinert orquestra a ambiência harmoniosa entre os gestos de Mauro Filho, o figurino de Denise da Luz, os desenhos de Kim Coimbra, as sonoridades de Hedra Rockenback e animações de Leandro Maman; todos, peças de um jogo de sugestões. Os sentidos permanecem abertos, tantos os da visão e audição, quanto as significações que pousam brevemente sobre as cenas e alçam outros voos. A qualidade de relação que “CaÊ” demanda é a de uma peça de arte contemporânea. Ou de uma pedra que, ao ser chacoalhada, revela-se oca, mas faz um barulho sugestivo de que ainda há algo a ser descoberto ali dentro. O palco está coberto por pedras como essas, espaçadas e interligadas entre si como se fossem o tabuleiro de um jogo. Elas e os outros elementos cênicos com os quais o personagem CaÊ se relaciona no mundo palpável ou no mundo virtual remetem a peças de Caelum. Desde os grafismos no terno vestido por Mauro e os desenhos e versos da animação, até a máscara com a qual o personagem disputa um jogo de estranhamento, concentrado nos malabarismos cômicos do olhar – para os objetos e, ocasionalmente, com a mesma vivacidade, para os espectadores.

CaÊ é essa espécie de palhaço-filósofo, menino-artista, tal qual o heterônimo do poeta português, “nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo”.


***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

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foto by Leonam Nagel

A rosa dos ventos ou o aprendizado pela pedra

por Valmir Santos

Simpatia É Quase Amor, chama-se assim o celebrado bloco carnavalesco de Ipanema que sai desde os anos 1980, no Rio de Janeiro. O nome é lembrado a propósito da primeira impressão diante do solo “CaÊ”. No teatro, e na arte em geral, a superfície sentimental tem pouca ou nenhuma relevância se os desígnios poéticos ambicionados pelos criadores de uma obra não pararem de pé, digamos assim. Não é o caso do trabalho em análise.

De rosto e olhar mistos de zen e sapeca, o atuante esguio em figurino escuro pontilhado de coloridos sai da coxia saltitante em sua bike estilizada com jeito de velocípede. Ele carrega nas costas uma baita caixa térmica de invejar entregador do serviço de delivery, seu baú de bons achados nas andanças. Nessa volta inicial de reconhecimento sobre o território cênico, de base branca forrada de desenhos gráficos, objetos e pedras em relevo, Mauro Filho já tinha o público nas mãos, como se diz dos comediantes à mancheia. E o jogo mal começava.

O artista de fato conseguiu sustentar a primeira impressão ao longo do encontro com as crianças e os adultos na apresentação de “CaÊ” dentro do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, neste dissimulado inverno de Itajaí.

Entre as muitas acepções de simpatia está a “faculdade de compenetrar-se das ideias ou sentimentos de outrem”. Ou seja, a disposição para as afinidades e reciprocidades daquilo, daquele ou daquela que solicita ou é solicitada, solicitado, enfim, a disposição sempre demandará trabalho considerável de ambas as partes.

A beleza do espetáculo da Karma Cia. de Teatro repousa no convencimento da audiência de que tudo está se passando nos conformes da gangorra lírico-lúdica. O abstracionismo rege o sistema cênico da obra conquanto sua matéria-prima seja feita do legado de alguém que soprou a nau da trupe para outra direção que não aquela em que estava concentrada nos ensaios antes da morte do artista visual e poeta Mauro Caelum (1958-2016). Esse céu que vem protegendo esta edição do festival com muita solaridade para enfrentar a sombra que pesa sobre a vida brasileira atual. “Caélium” é a pronúncia do sobrenome que quer dizer céu, lemos no livro dedicado ao artista e lançado em 2013 na cidade com o subtítulo: “filosofia, arte e meio ambiente”.

foto by Leonam Nagel

É em nome do pai que Mauro Filho e os pares reprocessaram as coordenadas que o acaso impôs. O dispositivo de uma bússola de brinquedo evidencia a metáfora da navegação da qual a equipe tomou tento ao atingir consistência imperceptível numa primeira mirada e resplandecente justamente pela discrição de que ela fosse morar nos detalhes.

A dramaturgia do também diretor convidado Max Reinert subtrai o texto – isso mesmo que você leu –, uma faca de dois gumes quando não se quer propor exatamente um espetáculo de mímica. Tampouco a comédia física ou a expressividade da dança.

Combinação assim só vimos em “Nomes do pai” (2010), espetáculo da Cia. da Memória (SP) em que Luis Alberto de Abreu, expoente da dramaturgia nacional (introdutor da criação colaborativa e parceiro de Grupo GalpãoTeatro da VertigemCia. Teatro Balagan e outros), inspirou-se livremente em dois autores tchecos, Franz Kafka (“Carta ao pai”) e Rainer Maria Rilke (“Cartas a um jovem poeta”) para abrir mão da palavra.

Na psicanálise, Lacan atribui função simbólica à expressão “nome do pai” para destacar que a filiação também é um fato da linguagem. Aliás, um dos seus aforismos mais conhecidos versa sobre “o inconsciente estruturado como uma linguagem".

CaÊ” oferta meio termo singular que confere certa remissão à cultura oriental na gestualidade precisa, jamais virtuosística, e na ambientação sonora (por Hedra Rockenbach), da qual a canção-chefe “Mundo novo” flerta com a poesia concreta (“um ovo/ mundo novo/ mundo novo eu vi/ um ovo mundo novo/ e vou partir daí”). Soa como mantra.

Em suas linhas geométricas, fios infinitos puxados pela narrativa não verbal, o atuante movimenta-se por meio das lateralidades e perpendicularidades. A sinopse dessa experiência poderia ser resumida ao chamado para circular por aí, viajar com a criança livre dos pais e responsáveis.

Imagens projetadas somam texturas, como o desenho da rosa dos ventos que delineia os pontos cardeais e seus intermediários e serve para a navegação geográfica ou para a localização de determinado corpo ou objeto em relação a outro.

A memória do pai que sublimou a arte no ato de viver permite ao atuante configurar a si, condutor de fundo autobiográfico tocante e devidamente distanciado sem perder a divisa do afeto. Como se um contador de história, porém não estrito ao formato dessa prática. Não há roda, mas sentimo-nos como se numa, em plena relação frontal da sala multiuso da Inventiva Itajaí. Por isso, finda a apresentação, o público demorou a se mexer, bebês incluídos. Não queria ir embora do habitat forjado do aprendizado pelas pedras do caminho nas escolhas poéticas.

Em A educação pela pedra (1965), o escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto esquiva-se do poema sentimentalista, entre outras escolhas, sem que a rigorosidade formal o impedisse de incorporar temas os mais triviais.

A sensorialidade da fábula encenada por Reinert é a espinha dorsal do convite ao jogo de acampar e desacampar que formula (joelheiras e cotoveleiras dimensionam o tamanho da tarefa do ator). Isso significa tomar a plateia pelas mãos do imaginário, deslocá-la para o farol da ilha da utopia no interior de cada testemunha.

Antes, o próprio Mauro Filho dá notícias do distanciamento autobiográfico nos pesos e contrapesos da peregrinação, sóis e luas adentro. De repente a narrativa guina para a ancestralidade. Uma máscara que parece feita de papel machê, como aquelas gestadas pelo artista homenageado, apresenta traços de povos originários e a sonoridade confirma a discreta saudação aos que vieram antes de nós. Num átimo, fomos transportados lá para os tempos imemoriais.

***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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foto by Carolina Copello
Quatro paisagens de desobediência


por Luciana Romagnolli

Paisagem 1. Itajaí, fim de tarde de sexta-feira, calçadão da avenida Hercílio Luz. Um homem está parado, ele veste terno e os cabelos presos, a postura ereta completa a imagem civilizada que poderia pertencer a um executivo ou outro profissional do capitalismo. Exceto pelos pés, descalços. Sob eles, quadrados de grama enfileiram-se como tapete. O corpo civilizado percorre o caminho verde, agacha-se, deposita o bloco de grama imediatamente à frente, levanta-se, percorre o caminho de volta novamente em busca do último pedaço.

Leandro Maman repete essa ação sucessivamente, deixando atrás de si um rastro de terra sobre o concreto enquanto esverdeia o caminho à sua frente. Seu pisar recusa o chão duro com o qual se recobriram as cidades, recusa o tempo apressado dos deslocamentos urbanos, recusa o utilitarismo da vida. À sombra do mito de Sísifo, sua inútil caminhada é uma desobediência contra a (des)razão do progresso.

Ao passo que o homem evolui pela calçada movimentada respeitando seu tempo e seu propósito, a performance “Por onde andei” segue a contrapelo do asfalto e de sua lógica de eficiência e produtividade. Há uma calma na execução dessa partitura, uma fidelidade aos ritos, que confere à imagem em movimento uma qualidade meditativa. Espaço mental para o pensamento perder-se e depositar leituras subjetivas, que variem de acordo com os outros elementos da paisagem em trânsito. Um rebuliço à porta de uma loja, cidadãos apressados, outros distraídos, uma bicicleta que quase tomba ante a parada de duas mulheres para observar a estranheza da cena extracotidiana.

O que se passa no tato dos pés quando abandonam a fria aspereza do asfalto para resgatar a cumplicidade com a natureza? Outra ecologia se funda. Outra relação do humano com o meio – ambiente, da rua, de vida.

Paisagem 2. Uma das duas jovens quase atropeladas pela bicicleta se insere na performance para ajudar o homem. Sem dúvida, o esforço físico do trabalho de recolher e estender o tapete de grama é pesado. Ela retira os sapatos e adentra o espaço de percurso para realizá-lo com ele. Cumpre semelhante partitura de ações, em tempo e postura menos rígidos.

Ao passo que a dupla movimentação desfaz o ritmo e enfrenta atravancamentos entre os corpos, a paisagem se torna a de uma relação temporária, que reenquadra a ação e altera seu motor. É preciso agora negociar o espaço, ceder o domínio, dividir o pouco chão, esperar o outro corpo para que se mova a pequena célula social, ainda sob os ritos e os propósitos dele, ainda desobediente ao concreto.

foto by Carolina Copello

Paisagem 3. Agora já são quatro ou cinco os corpos que se revezam para pegar um dos pedaços de verde e refazer o caminho sempre um pouco mais adiante. Eles não tiram os sapatos, eles não pisam a grama. Enquanto Leandro atém-se ao princípio de não tocar os pés no concreto, eles não sentem o contato da sola com a terra e a vegetação. Outra norma silenciosa os move. Cada vez mais rápido. Cada vez mais longe.

Logo, espaçam os tapetes de grama entre si, e Leandro precisa pular. Não basta. Espaçam mais, até onde o corpo não alcança, e é preciso carregá-lo nos ombros para que se cumpra sua premissa. O tempo e a distância se tornam alheios à proporção humana. Cada vez mais longe, cada vez mais rápido, o caminho fica para trás, já sem rastro, submetido à lógica do progresso e da produtividade que, antes de tudo, justificou a pavimentação do que já foi mata ou rio.

Um percurso que seria cumprido em quatro ou cinco horas se reduz a uma. Eficientemente.

Paisagem 4. No gramado ao fim da avenida, os corpos já em posição de descanso ensaiam uma conversa. Entre os que se somaram à performance, há o sentimento de satisfação por terem exercido a solidariedade. Por interromperem, também, o curso utilitário de suas rotinas para uns momentos de arte. Por terem tornado menos pesado o esforço do performer. Não há a simbolização de um homem de pés descalços que carrega a própria grama em desobediência ao chão pavimentado. Perdeu-se onde no caminho? Há também o homem haitiano deslocado do universo linguístico comum, que parece acreditar ter realizado um trabalho e esperar seu pagamento. Não há tradução possível. O performer pede que alguém o pague. Não há comunicação entre esses corpos. Não se comunica o princípio da ação que passariam a realizar juntos.

Então a lógica do progresso se impõe.

Ainda. Quanto de “realidade” uma obra artística aguenta?

No artigo “Y después de la performance que?”, o pesquisador espanhol Oscar Cornago faz pensar sobre essa questão formulando as seguintes perguntas: “Como conciliar a coerência interna da obra enquanto um sistema próprio com a necessidade de fazê-la frente a um público? Como estabelecer a relação entre autonomia e dependência?” (2016, p. 28).

Por onde andei” deriva de uma pesquisa de ações urbanas da Eranos Círculo de Arte com foco na construção de uma imagem. Esperar que a imagem dos primeiros passos mantenha-se ao longo da caminhada seria incoerente com os princípios da performance e da intervenção na rua. Deixar que o público capture os seus sentidos e produza uma imagem invertida é incoerente com o projeto artístico em curso.

A cidade atravessa performance tanto quanto a performance atravessa a cidade. Mas a cidade transforma a performance mais do que a performance transforma a cidade.

***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

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foto by Carolina Copello

O raio de ação de pisar na grama

por Valmir Santos

Entre as ações mais conhecidas da performer sérvia Marina Abramovic está “Os amantes: a caminhada da Grande Muralha” (1988). Ela partiu de uma extremidade e o artista alemão Ulay, de outra, percorrendo o conjunto de fortificações do norte da China feito de pedra, tijolo, terra compactada e outros materiais. Noventa dias depois, o casal se encontrou em determinado ponto do monumento para marcar o fim do relacionamento e da parceria criativa. Contrariando o provérbio do poeta espanhol Antonio Machado, o caminho também se desfaz ao caminhar (“Caminante, no hay camino,/ se hace camino al andar”).

Leandro Maman é artista do coletivo Eranos Círculo de Arte e bolou a performance “Por onde andei”, em que cumpre o programa de percorrer três quarteirões do calçadão da rua Hercílio Luz, no centro comercial de Itajaí, pisando exclusivamente a grama com os pés nus. Para evitar contato com o chão de concreto ele improvisou um “tapete” enfileirando placas de relva com cerca de 60 centímetros cada uma.

O trajeto de aproximadamente 600 metros passou por duas faixas de pedestres e estimamos ter durado noventa minutos. O procedimento solitário consistia em apanhar a placa traseira da fila de gramas a seus pés e carregá-la para a dianteira, sucessivamente, espichando um caminho artificioso espalmado pelos pés. Esse movimento contínuo, por sua vez, desenhou um rastro de terra no calçamento e poucos minutos depois a ação passou a contar com a interação de parte do público.

Mamam chegou a ter dezesseis braços voluntários no deslocamento das placas. Cumplicidade de pessoas possivelmente vinculadas ao campo das artes cênicas que o Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha demanda. A maioria foi vista nesses dias em filas de espetáculos da programação.

Talvez por isso a dinâmica de jogo logo se impôs. Algum colaborador da ação propôs espaçar as placas e o performer modificou seu ritmo. Os passos transformaram-se em saltos. Ele chegou a ser carregado pelos parceiros avulsos. O “jeitinho” alterou o programa. Mamam estava aberto às intercorrências. Numa ocasião anterior, no mesmo local, “Por onde andei” somou engajamento de três pessoas.

foto by Carolina Copello

A recepção a essa travessia inusitada, concluída na área externa e gramada da Casa da Cultura Dide Brandão, não poderia deixar de ser afetada, por exemplo, pela reação ou indiferença dos pedestres e trabalhadores do comércio ao longo do calçadão.

Das interpretações ouvidas nas portas das lojas, ouvimos gente atribuindo a performance à busca por Cristo; praguejando o ex-presidente Michel Temer, que deveria ajudar a carregar as placas como um castigo por causa da corrupção; ou elaborando a adesão daqueles que arregaçaram as mangas e sujaram suas roupas de barro como manifestação de solidariedade à otimização do percurso do artista.

Por onde andei” transmite uma sensação de impotência da arte em se fazer presente na paisagem urbana e, por extensão e pelo debate urgente, na sociedade como um todo. Seja no ciclo repetitivo, como um Sísifo carregando pedra, seja na interação paliativa com interlocutores já iniciados no riscado, o artista vestido de terno e calça pretos – figurino devidamente manchado pela terra que solta da grama – enfrenta limites no seu raio de ação.

Um homem de origem haitiana juntou-se a Mamam, que lhe foi receptivo – apesar da barreira recíproca da língua. O atuante chegou a orientá-lo a cuidar da coluna na hora de se abaixar ou de se erguer para transportar as placas.

Mas essa troca se deu, vimos depois, porque o estrangeiro sorridente e proativo intuiu no mecanismo reiterativo da performance uma oportunidade de trabalho informal remunerado. Posteriormente, na roda de bate-papo com parte dos caminhantes que seguiu o performer, o rapaz compartilhou sua necessidade de enviar dinheiro aos filhos que permanecem no país caribenho e teriam se tornado órfãos recentemente.

A performance enviou sinais autômatos para traduzir as dificuldades de construir qualquer forma de relacionamento nos dias que correm ou já trazia em seu sistema interno um jeito acanhado de gerar capilaridade? Para pegar carona na planta rizomática que a grama é, que insights ainda subjazem do processo de criação? Como intensificar a presença em espaço público bastante disputado por bicicletas no fim de expediente de uma sexta-feira?


***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena


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foto by Lenon Cesar

O amor incondicional do teatro pelo artifício

por Valmir Santos

Como os sujeitos podem se tornar intérpretes competentes da própria experiência a despeito dos obstáculos da vida? O discurso amoroso pode dar pistas ridículas, como o poeta Fernando Pessoa lia as cartas dos seres enamorados. E propiciar ressignificações subjetivas, como o semiólogo Roland Barthes tocou o coração da linguagem. Digna de figurar como objeto de estudos culturais, por mexer nas bases complexas e idiossincráticas de dois casamentos em que as pessoas são heterossexuais e octogenárias, “Ilusões” é uma peça de título autoexplicativo que o escritor russo Ivan Viripaev faz questão de bagunçar as expectativas, para deleite estético da La Vaca Companhia de Artes Cênicas.

Os artistas de Florianópolis agiram como antropófagos diante dessa dramaturgia de 2011 que aborda peripécias afetivas universais com estilo narrativo engenhoso. Uma das características de Viripaev é o modo como induz seus personagens ou figuras à enunciação direta ao público. A comunicação é indispensável nessa escrita. Sugestiona economia na troca de olhares e dizeres entre os próprios atores.

Como em “Oxigênio” (2010). Esta foi a primeira montagem de um texto seu no país, pelas mãos do diretor Marcio Abreu, da companhia brasileira de teatro (PR). Patrícia Kamis e Rodrigo Bolzan pulsavam falas e corpos no tablado inclinado, como se precipitassem à plateia. No enredo, homem recém-casado matou a mulher de quem se dizia loucamente apaixonado. O feminicídio instiga a repensar o que é essencial nos planos da intimidade, da política, da religião, e assim por diante.

Na peça em pauta, que fez parte da programação do 6º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, o prosaico mote de dois velhos casais passando a limpo suas uniões e respectivas amizades correria sério risco de cair na monotonia. Contudo, o autor nascido na Sibéria há 44 anos e atualmente radicado na Polônia produz um retrato corrosivo e devidamente cômico da condição humana.

A proeza formal está no modo como estrutura o tempo. Muita gente pode associar Sandra, Dennis, Albert e Margaret ao poema “Quadrinha”, de Carlos Drummond de Andrade. Na rede tecida por Viripaev, porém, a retrospectiva e a projeção dos fatos não são lineares ou circulares. No jogo de revelações e omissões, de negociação de desejos inconscientes e que por vezes explodem em pleno leito de morte, a ação se faz descrição e a personagem, voz, requerendo um nível de performatividade que o quarteto da La Vaca atende à altura sofisticadamente.

É aqui que os monólogos blocados pedem (e são atendidos) variações de uma comédia física sutil o suficiente para não desmanchar nuances e duplos sentidos no travo intermitente desses homens e mulheres adoráveis em suas falhas românticas. O texto não julga. Não se trata apenas de decompor os mecanismos terríveis do amor romântico, mas de verificar o quanto os ruídos de percepção e de entendimento da vida a dois (ou três, quatro ou mais) ainda chacoalham corações e mentes no século XXI.

foto by Lenon Cesar

Livres para sapatear sobre o cadáver das desilusões, Anderson do Carmo, Drica Santos, Milena Moraes e Renato Turnes combinam distanciamentos e comentários verbais, gestuais e musicais que abrem o jogo para a complementariedade ou edição do público. A experiência, afinal, é de acumulação.

Como a identificação com os assuntos são atávicas – quase todo mundo que pensa em casamento quer amor, carinho e reconhecimento –, os atuantes fazem do artifício de colocar-se em cena metateatralidade. Até para subverter premissas da autoajuda e complexificá-la, por exemplo, numa linha rosa que serpenteia na lateral de uma montanha, confundida com o pôr-do-sol.

O diretor Fábio Salvatti, por sua vez, potencializa a materialidade cênica ao investir com muita coragem no que as sombras escondem do caráter e da perversidade de cada um, e no que a luz é capaz de arquitetar enquanto estatuto da arte.

A desenvoltura com que os artistas operam os refletores móveis e suportes multiusos no tablado semidesnudo reacende o conceito artesanal valorado de maneira angular no projeto. Uma apropriação orgulhosa e desapegada de procedimento que poderia ser interpretado como arcaico e resulta em atitude desencanada e coerente com uma dramaturgia penetrada pela tradição russa sem trair os anseios mais recônditos em termos de poética.

Esses corpos e rostos nem sempre estão iluminados. Tornam-se paisagem no claro e escuro, a disposição crua que dá substrato às reflexões sobre identidade de gênero, homofobia, antirracismo e gordofobia. Vieses inscritos nos corpos “diferentes” que performam os casais cis (pessoas cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhes foi atribuído no nascimento). Esse balaio sociocultural singulariza e tropicaliza a montagem brasileira.

Outro componente genuíno dessas “Ilusões” é a música a capella. O canto competente e a dancinha avacalhada equivalem a passagens esclarecedoras/escurecedoras. Ritmos e melodias de uma presunção de alegria que o cidadão deste país já encampou com mais veemência e, no momento, tenta caminhar e reexistir como se atravessasse um nevoeiro espesso.

Ivan Viripaev e La Vaca, que está no seu 11º ano, entregam o que prometem nos quesitos alteridade e criticidade. Uma aliança transcontinental, quem sabe transiberiana, de bom humor e inteligência.

***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena


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Os críticos participaram do festival à convite da organização do evento.

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