sexta-feira, 10 de maio de 2019

"Bolsa Amarela" por Valmir Santos

foto by Carolina Copello

Como operar na verdadeira bolsa de valores?

por Valmir Santos

Não necessariamente nessa ordem, as vontades de crescer, de ser escritora e ser menino – pois tudo no mundo dos adultos reafirma os privilégios dos homens sobre as mulheres – fazem da história da narradora e protagonista Raquel uma jornada infantil peculiar em suas reflexões demasiado humanas.

Pois o pacote do espetáculo “Bolsa amarela” é mais amplo ainda. A dramaturgia elaborada a partir do romance da gaúcha Lygia Bojunga, “A bolsa amarela”, publicado em 1976, abarca não apenas a pauta do feminismo mais saliente, incontornável na vida contemporânea, como questões de desigualdades sociais e econômicas infelizmente ainda aflitivas no contexto brasileiro 43 anos depois.

Há a criança driblando o quadro socioeconômico em que está inserida, imaginativa, propositiva e inquieta no desenvolvimento de seu caráter. Raquel cultiva desde cedo a perspectiva crítica em muito diferente de práticas e posicionamentos desrespeitosos de familiares mais próximos e não menos amados por ela. O exercício dessa história injeta autoestima em quem se identifica com a idade e convida a colocar-se no lugar do outro às vezes postado debaixo de seu nariz e sob o mesmo teto.

Muito pertinente, portanto, a iniciativa do Grupo Teatral Porto Cênico de incluir esse trabalho no repertório que vem construindo em Itajaí desde 2004.

A dramaturgia e adaptação de Marcelo F. de Souza (que também atuou em Meu pai é um pássaro neste 6º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha) multiplica Raquel em duas vozes com as interpretações de Aline Carolina Barth e Caroline Carvalho.

Isso valoriza a subjetividade do pensamento altamente sofisticado dela, afeita a sínteses inspiradoras quando conversa com seus botões ou, por outra, nutre curiosidade e se pergunta a todo instante sobre as atitudes dos parentes quanto a seu jeito de ser, sentir e agir nos primeiros anos de formação.

Os pais, os irmãos mais velhos, a tia e um primo insistem em tolher suas vontades e desprezar sua inteligência, tratando-a com infantilidade quando sua percepção dos acontecimentos e dos comportamentos torna-se mais aguçada pela sensibilidade nata ou adquirida no convívio da escola – espaço recuado na narrativa do livro para servir ao retrato do cotidiano doméstico.

É na casa dela, ou melhor, no interior da cabeça dela que a imaginação reina solta e os criadores encontrariam terreno fértil para desenvolver uma teatralidade que fosse tão ou mais libertária quanto o tino da menina. Contudo, as ideias e os fazeres não se encaixaram nesse quesito.

Dentro das formas animadas, objetos e bonecos são acessados pelo Porto Cênico para dar asas aos amigos imaginários com os quais Raquel expõe e reelabora seus conflitos. E para tanto ela tem a cumplicidade dos leitores e espectadores, no caso. O uso dessa técnica na montagem macula o espírito da manipulação, coronário na modalidade teatral visitada.

foto by Carolina Copello

O veterano Grupo Sobrevento (SP) costuma afirmar que a manipulação, em si, não deveria ser o motor da ação, mas o corpo de quem possibilitaria dar a ver o ponto de mutação por meio do qual o boneco ou o objeto se emancipam – tal qual o processo de autoconhecimento explanado pela narradora e personagem.

A evolução do apaixonamento do galo Rei/Afonso (boneco) pela Guarda-Chuva (objeto), por exemplo, tem seu encanto afetado quando são notados gestos e movimentos mecânicos.

Ao serem retirados do fundo da sacola agigantada de modo a ganharem voz ou sentido atribuídos pela menina – verdades verdadeiras para o público embalado pela história do lado de cá –, o galo e “a” Guarda-Chuva oscilam em suas potencialidades expressivas. Idem para a mímica ligeira das pipas que não sugerem o tempo para que sejam observadas as linhas de quem empina com as mãos, ou para que se desenhassem num céu hipotético as raias e rabiolas.

O artigo “a” bolado pela própria autora para Guarda-Chuva abre uma janela auspiciosa para se pensar os lugares de gênero e da brincadeira com a linguagem, ao que o grupo endossa. Há mais mistérios entre linguiça e enguiça do que sonha a vã imaginação.

A sobriedade das cortinas da cenografia tende ao universo despojado da família, mas soa um ambiente artisticamente frio para o público a que se destina. Já a desproporcionalidade da cadeira e da bolsa-título em seu design ficcionalizado as retira da inanição de origem e cumpre tabelinha com o espírito das coisas como elas deveriam ser segundo a Raquel.

***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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