![]() |
foto by Carolina Copello |
Como operar na verdadeira bolsa de valores?
por Valmir Santos
Não necessariamente nessa ordem, as vontades de crescer, de ser escritora e ser menino – pois tudo no mundo dos adultos reafirma os privilégios dos homens sobre as mulheres – fazem da história da narradora e protagonista Raquel uma jornada infantil peculiar em suas reflexões demasiado humanas.
Pois o pacote do espetáculo “Bolsa amarela” é mais amplo ainda. A dramaturgia elaborada a partir do romance da gaúcha Lygia Bojunga, “A bolsa amarela”, publicado em 1976, abarca não apenas a pauta do feminismo mais saliente, incontornável na vida contemporânea, como questões de desigualdades sociais e econômicas infelizmente ainda aflitivas no contexto brasileiro 43 anos depois.
Há a criança driblando o quadro socioeconômico em que está inserida, imaginativa, propositiva e inquieta no desenvolvimento de seu caráter. Raquel cultiva desde cedo a perspectiva crítica em muito diferente de práticas e posicionamentos desrespeitosos de familiares mais próximos e não menos amados por ela. O exercício dessa história injeta autoestima em quem se identifica com a idade e convida a colocar-se no lugar do outro às vezes postado debaixo de seu nariz e sob o mesmo teto.
Muito pertinente, portanto, a iniciativa do Grupo Teatral Porto Cênico de incluir esse trabalho no repertório que vem construindo em Itajaí desde 2004.
A dramaturgia e adaptação de Marcelo F. de Souza (que também atuou em Meu pai é um pássaro neste 6º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha) multiplica Raquel em duas vozes com as interpretações de Aline Carolina Barth e Caroline Carvalho.
Isso valoriza a subjetividade do pensamento altamente sofisticado dela, afeita a sínteses inspiradoras quando conversa com seus botões ou, por outra, nutre curiosidade e se pergunta a todo instante sobre as atitudes dos parentes quanto a seu jeito de ser, sentir e agir nos primeiros anos de formação.
Os pais, os irmãos mais velhos, a tia e um primo insistem em tolher suas vontades e desprezar sua inteligência, tratando-a com infantilidade quando sua percepção dos acontecimentos e dos comportamentos torna-se mais aguçada pela sensibilidade nata ou adquirida no convívio da escola – espaço recuado na narrativa do livro para servir ao retrato do cotidiano doméstico.
É na casa dela, ou melhor, no interior da cabeça dela que a imaginação reina solta e os criadores encontrariam terreno fértil para desenvolver uma teatralidade que fosse tão ou mais libertária quanto o tino da menina. Contudo, as ideias e os fazeres não se encaixaram nesse quesito.
Dentro das formas animadas, objetos e bonecos são acessados pelo Porto Cênico para dar asas aos amigos imaginários com os quais Raquel expõe e reelabora seus conflitos. E para tanto ela tem a cumplicidade dos leitores e espectadores, no caso. O uso dessa técnica na montagem macula o espírito da manipulação, coronário na modalidade teatral visitada.
![]() |
foto by Carolina Copello |
O veterano Grupo Sobrevento (SP) costuma afirmar que a manipulação, em si, não deveria ser o motor da ação, mas o corpo de quem possibilitaria dar a ver o ponto de mutação por meio do qual o boneco ou o objeto se emancipam – tal qual o processo de autoconhecimento explanado pela narradora e personagem.
A evolução do apaixonamento do galo Rei/Afonso (boneco) pela Guarda-Chuva (objeto), por exemplo, tem seu encanto afetado quando são notados gestos e movimentos mecânicos.
Ao serem retirados do fundo da sacola agigantada de modo a ganharem voz ou sentido atribuídos pela menina – verdades verdadeiras para o público embalado pela história do lado de cá –, o galo e “a” Guarda-Chuva oscilam em suas potencialidades expressivas. Idem para a mímica ligeira das pipas que não sugerem o tempo para que sejam observadas as linhas de quem empina com as mãos, ou para que se desenhassem num céu hipotético as raias e rabiolas.
O artigo “a” bolado pela própria autora para Guarda-Chuva abre uma janela auspiciosa para se pensar os lugares de gênero e da brincadeira com a linguagem, ao que o grupo endossa. Há mais mistérios entre linguiça e enguiça do que sonha a vã imaginação.
A sobriedade das cortinas da cenografia tende ao universo despojado da família, mas soa um ambiente artisticamente frio para o público a que se destina. Já a desproporcionalidade da cadeira e da bolsa-título em seu design ficcionalizado as retira da inanição de origem e cumpre tabelinha com o espírito das coisas como elas deveriam ser segundo a Raquel.
Nenhum comentário:
Postar um comentário