sábado, 11 de maio de 2019

"Por onde andei" por Luciana Romagnolli

foto by Carolina Copello
Quatro paisagens de desobediência

por Luciana Romagnolli

Paisagem 1. Itajaí, fim de tarde de sexta-feira, calçadão da avenida Hercílio Luz. Um homem está parado, ele veste terno e os cabelos presos, a postura ereta completa a imagem civilizada que poderia pertencer a um executivo ou outro profissional do capitalismo. Exceto pelos pés, descalços. Sob eles, quadrados de grama enfileiram-se como tapete. O corpo civilizado percorre o caminho verde, agacha-se, deposita o bloco de grama imediatamente à frente, levanta-se, percorre o caminho de volta novamente em busca do último pedaço.

Leandro Maman repete essa ação sucessivamente, deixando atrás de si um rastro de terra sobre o concreto enquanto esverdeia o caminho à sua frente. Seu pisar recusa o chão duro com o qual se recobriram as cidades, recusa o tempo apressado dos deslocamentos urbanos, recusa o utilitarismo da vida. À sombra do mito de Sísifo, sua inútil caminhada é uma desobediência contra a (des)razão do progresso.

Ao passo que o homem evolui pela calçada movimentada respeitando seu tempo e seu propósito, a performance “Por onde andei” segue a contrapelo do asfalto e de sua lógica de eficiência e produtividade. Há uma calma na execução dessa partitura, uma fidelidade aos ritos, que confere à imagem em movimento uma qualidade meditativa. Espaço mental para o pensamento perder-se e depositar leituras subjetivas, que variem de acordo com os outros elementos da paisagem em trânsito. Um rebuliço à porta de uma loja, cidadãos apressados, outros distraídos, uma bicicleta que quase tomba ante a parada de duas mulheres para observar a estranheza da cena extracotidiana.

O que se passa no tato dos pés quando abandonam a fria aspereza do asfalto para resgatar a cumplicidade com a natureza? Outra ecologia se funda. Outra relação do humano com o meio – ambiente, da rua, de vida.

Paisagem 2. Uma das duas jovens quase atropeladas pela bicicleta se insere na performance para ajudar o homem. Sem dúvida, o esforço físico do trabalho de recolher e estender o tapete de grama é pesado. Ela retira os sapatos e adentra o espaço de percurso para realizá-lo com ele. Cumpre semelhante partitura de ações, em tempo e postura menos rígidos.

Ao passo que a dupla movimentação desfaz o ritmo e enfrenta atravancamentos entre os corpos, a paisagem se torna a de uma relação temporária, que reenquadra a ação e altera seu motor. É preciso agora negociar o espaço, ceder o domínio, dividir o pouco chão, esperar o outro corpo para que se mova a pequena célula social, ainda sob os ritos e os propósitos dele, ainda desobediente ao concreto.

foto by Carolina Copello

Paisagem 3. Agora já são quatro ou cinco os corpos que se revezam para pegar um dos pedaços de verde e refazer o caminho sempre um pouco mais adiante. Eles não tiram os sapatos, eles não pisam a grama. Enquanto Leandro atém-se ao princípio de não tocar os pés no concreto, eles não sentem o contato da sola com a terra e a vegetação. Outra norma silenciosa os move. Cada vez mais rápido. Cada vez mais longe.

Logo, espaçam os tapetes de grama entre si, e Leandro precisa pular. Não basta. Espaçam mais, até onde o corpo não alcança, e é preciso carregá-lo nos ombros para que se cumpra sua premissa. O tempo e a distância se tornam alheios à proporção humana. Cada vez mais longe, cada vez mais rápido, o caminho fica para trás, já sem rastro, submetido à lógica do progresso e da produtividade que, antes de tudo, justificou a pavimentação do que já foi mata ou rio.

Um percurso que seria cumprido em quatro ou cinco horas se reduz a uma. Eficientemente.

Paisagem 4. No gramado ao fim da avenida, os corpos já em posição de descanso ensaiam uma conversa. Entre os que se somaram à performance, há o sentimento de satisfação por terem exercido a solidariedade. Por interromperem, também, o curso utilitário de suas rotinas para uns momentos de arte. Por terem tornado menos pesado o esforço do performer. Não há a simbolização de um homem de pés descalços que carrega a própria grama em desobediência ao chão pavimentado. Perdeu-se onde no caminho? Há também o homem haitiano deslocado do universo linguístico comum, que parece acreditar ter realizado um trabalho e esperar seu pagamento. Não há tradução possível. O performer pede que alguém o pague. Não há comunicação entre esses corpos. Não se comunica o princípio da ação que passariam a realizar juntos.

Então a lógica do progresso se impõe.

Ainda. Quanto de “realidade” uma obra artística aguenta?

No artigo “Y después de la performance que?”, o pesquisador espanhol Oscar Cornago faz pensar sobre essa questão formulando as seguintes perguntas: “Como conciliar a coerência interna da obra enquanto um sistema próprio com a necessidade de fazê-la frente a um público? Como estabelecer a relação entre autonomia e dependência?” (2016, p. 28).

Por onde andei” deriva de uma pesquisa de ações urbanas da Eranos Círculo de Arte com foco na construção de uma imagem. Esperar que a imagem dos primeiros passos mantenha-se ao longo da caminhada seria incoerente com os princípios da performance e da intervenção na rua. Deixar que o público capture os seus sentidos e produza uma imagem invertida é incoerente com o projeto artístico em curso.

A cidade atravessa performance tanto quanto a performance atravessa a cidade. Mas a cidade transforma a performance mais do que a performance transforma a cidade.

***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

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