quarta-feira, 8 de maio de 2019

"Jogo da Guerra" por Luciana Romagnolli

foto by Carolina Copello

Erro encena a nossa falta de estratégia

por Luciana Romagnolli

Performers são, antes de tudo, complicadores culturais. Esta frase de Eleonora Fabião, impressa em um artigo sobre a potência da performance em ativar o paradoxal de estar vivo, faz pensar em “Jogo da guerra” como uma complicação. Com esse trabalho, o Erro Grupo, em atuação desde 2001 em Florianópolis, cria uma série de complicações de ordem estética, ética e política, que desestabilizam não somente noções de ficção e real, e de espectador e performer, mas, sobretudo, a eficiência e a validade das estratégias de ação política progressistas em curso. Inspirado pelo movimento de Maio de 1968, na França, e pela obra homônima de Guy Debord, “Jogo da guerra” assume o estatuto de arte ativista, organizada como um jogo cênico de guerrilha urbana que acontece em três frentes, duas delas na rua. Arte ativista no sentido desta que adota uma perspectiva crítica ao sistema produtivo capitalista e promove uma ação prática, vinculada a um lugar e em compromisso com a realidade. Como ao reunir grupos de espectadores para planejar ataques a pontos-chave da violência institucional vigente.

O público se separa entre os três núcleos onde se concentram os atores do grupo e experimenta perspectivas distintas do jogo, sem que um saiba a do outro (as da rua se encontram; a da sala, segundo relatos, acompanha as ações por falsas redes sociais). Isso afasta qualquer possibilidade de apreensão da totalidade do projeto em uma única execução, como ocorreu no Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, em Itajaí.

Ao chegar à concentração em frente à Casa da Cultura, no fim de tarde de terça-feira, os espectadores atraídos pelo canto das atrizes Luana Raiter (também dramaturga, ao lado do diretor Pedro Bennaton) e Rachel Seixas logo se viam em uma formação de roda, atrás de uma barricada de papelão, questionados sobre o porquê de estarem ali. “Estou ficando doente, estou exausta”, diz Rachel. Com essas vagas palavras, alude a um sentimento comum diante da situação política brasileira. Mais que isso, cabe a cada espectador intuir.

A forma de convite à participação pouco desfaz a timidez inicial de um público surpreendido pela maneira como desavisadamente é posto dentro de uma narrativa como se fosse – e passa a ser – parte propositora dela. A partir daí, será instado a mostrar o que trouxe de útil para a guerrilha urbana e a escolher os alvos e as formas de ação.

Na situação presenciada em Itajaí, o local escolhido foi uma igreja católica, após poucas sugestões e um brevíssimo debate de ideias restrito a falas de Luana (não) e Rachel (depende da situação) se pegariam ou não em armas, ao que uns espectadores responderam com movimentos negativos de cabeça. A discussão sobre o que fazer na igreja tampouco avançou até chegarmos lá.

O que se segue é, até certo ponto, específico dos acontecimentos do dia 7 de maio, em Itajaí, e pode ou não encontrar ecos em outras “apresentações” conduzidas pelo grupo. Eis uma das complicações que o Erro ativa. Sua forma é liminar, habita a imprecisão de zonas transitórias entre formatos conhecidos. E sua proposta de construção coletiva com o espectador, ungido à dupla posição de agir e observar, abre-se à imprevisibilidade das escolhas que serão feitas, e que se somam à já imponderável pulsação da rua.

Afinal, “Jogo da guerra” é teatro na rua, feito diante de trabalhadores e passantes alheios ao caráter artístico daquelas ações. É teatro imersivo, à medida que o espectador se encontra em relação direta (realizar uma manifestação ou ataque) com um ambiente no qual está fisicamente imerso (as ruas do centro da cidade). É artivismo, conforme previamente argumentado. É acontecimento cênico, estética e dramaturgicamente elaborado a partir de uma proposição ficcional silenciosamente pactuada com o público (algo como “e se nos encontrássemos para a guerrilha urbana?”). E é acontecimento na realidade, capaz de ferir o corpo da cidade e de seus habitantes. À porta da igreja, uma das atrizes gritou palavras como quem devolvia uma violência sofrida. Alguém decidiu escrever no chão, em carvão: “parem de nos matar”. Outro, que ainda não sabíamos ator “infiltrado” como espectador subversivo e pronto a radicalizar as ações, começou o preparo de uma bomba em uma panela de pressão e foi impedido. Isso descreve minimamente o que se passava dentro do grupo que formamos.

O que se passava ao redor era tratado como paisagem humana. Se fosse teatro, seriam cenário e figurantes. Até que uma mulher se aproximou e interrompeu a ação aos gritos de “na porta da minha igreja não!”. A ferida que se abriu não foi só da ordem da ficção. Um embate extremamente duro com uma pessoa que concentra em si imagens mais contraditórias do nosso tempo: ser mulher, ser negra, ser trans, ser devota, ser autoritária e contrária à cena coletiva armada contra ameaças a liberdades de corpos como os dela.

foto by Carolina Copello


O jogo nos coloca diante das complicações do nosso tempo. De perguntas sobre como combater uma ideologia fascista que ascendeu ao poder de forma antidemocrática, cooptou cidadãos de todos os estratos sociais e, dia a dia, deturpa as narrativas sobre o que é violência.

Para aquela mulher, a violência era o “desrespeito” à igreja, e a arte não tinha o direito de chegar até ali. Cabe notar que sua reação, de censura e intolerância, foi inflamada pela não compreensão de que a insinuação da construção de uma bomba era “teatro”. Ela reagia à bomba diante da igreja, que pareceria violenta e injustificável a muitos outros de espectros políticos menos extremos que o dela.

Diante da situação ali armada, de ânimos acirrados, as atrizes e o grupo rumaram a outro ponto de ataque constando o fracasso da ação. As respostas aos questionamentos sobre o recuo indicaram a ansiedade em agir. “Vamos fazer qualquer coisa”, dizia Luana, dentro de uma lógica de menos conversa, mais ação. “Não dá para esperar unanimidade”. Atribuir essa fala à atriz pode significar incorrer no mesmo erro de acreditar que o ator infiltrado era “só” um espectador. Ao mesmo tempo, tratar como "personagem" parece limitado do ponto de vista da performatividade do trabalho e da efetividade de suas ações no espaço público.

Possivelmente, a fala dela, assim como a atitude dele, compõe um quadro dialético no “Jogo da guerra”, à qual os espectadores haverão de reagir. Contudo, a posição de propositoras e condutoras do jogo ocupada pelas atrizes, somada à falta de cumplicidade entre o público recém-reunido, não permite uma dinâmica totalmente desierarquizada na qual seja factível opor-se a elas e instaurar outra forma de ação.

Pessoalmente, algo se perdeu nesse caminho: a adesão à participação, facilmente conquistada pela constatação de um “comum” entre aquelas pessoas, baseado na revolta diante da situação política, foi substituída por um sentimento de repulsa às ações daquele coletivo. O fracasso é da possibilidade de uma ação conjunta que não atropele eticamente os participantes. Fracassamos em formar um “Nós”, com uma mínima, mas determinante, pauta em comum, que sustente (inclusive eticamente) as ações.

Talvez se a ficção sobressaísse, e a sensação de reencenar um longínquo Maio de 1968 em maio de 2019 prevalecesse, essa urgência tivesse a força de uma reação à ameaça à vida em situação fictícia de guerra instaurada. Entretanto, a proximidade dessa suposta ficção com o contexto brasileiro atual, à espera de uma mobilização popular efetiva para impedir a continuidade da devastação econômica e social instalada, situa o “Jogo da guerra” muito numa zona mais indiscernível de uma experiência real. A essa sensação, a reação à porta da igreja reforçou.

Como continuar, então? Como deixar para trás a situação de confronto real que se instaurou naquela calçada? Que a(r)tivismo é esse que abandonou a crença no diálogo? Quem são os oponentes, a mulher à porta da igreja ou os detentores dos cargos de poder? A quem se direciona a ação, aos que aderem ao comando “estou exausta” ou aos que apresentam resistência? Que imagem se constrói para o público não intencional? Quem sai enfraquecido? Como prever estratégias para que um teatro feito na rua não se aliene do que acontece na rua?

A dramaturgia de “Jogo da guerra” evidentemente não busca o “sucesso” da operação. Ela trata do fracasso, das incertezas, das hesitações, das limitações – como a despedida de Luana com a justificativa de “buscar o filho na escola”. Tal como a “Escola” de guerrilheiros representada pelo diretor chileno Guillermo Calderón em palco italiano em festivais brasileiros, a intervenção urbana do grupo catarinense faz da rua essa experiência preparatória para um devir.

Para além de um fracasso ensaiado, o Erro encena nossa falta de estratégia, enquanto oposição, a formar um “Nós” capaz de dialogar no dissenso e manter sua força de mobilização, pactuando prioridades, linhas de ação e modos operacionais para agir contra a subtração de nossos direitos civis. Faz pensar nas estratégias que temos assumido, na política, de isolamento em bolhas supostamente consensuais. E no risco – alertado por Manoel Delgado – de que a barca do artivismo acabe se rompendo contra a mesma vida cotidiana que aspirava a romper.

Complicações.

***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

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