sábado, 4 de maio de 2019

"Therése visita a janela azul" por Valmir Santos

foto by Leonam Nagel (Ambar Audiovisual)

Infinito particular

por Valmir Santos

Uma das imagens icônicas do cinema do grego Theo Angelopoulos é aquela da mão agigantada de uma estátua de concreto em “Paisagem na neblina” (1988). O fragmento maciço da escultura de concreto, cujo dedo indicador está quebrado (o dedo de Deus?), é alçado das águas de uma baía por meio dos fios de aço de um helicóptero. E assim desaparece no céu, sob o olhar estupefato das duas crianças protagonistas, menina e menino, irmãos em viagem iniciática da Grécia à Alemanha em busca do pai que não conheceram.

O fragmento do filme aportou na memória durante o miniespectáculo “Therése”, uma das três pernas do teatro de lambe-lambe “Therése visita a janela azul”. Aos poucos, primeiro uma, depois as duas mãos do manipulador dão vida ao boneco na cena de cerca de três minutos que é acompanhada por uma pessoa de cada vez. Após idas e vindas ao hospital, a figura retorna à casa e busca forças para deixar tudo arrumado antes de sucumbir.

A morte é o ponto de partida dessas dramaturgias. Em “A visita”, na caixa-teatro vizinha, acompanhamos o momento finito de um homem no leito hospitalar. Em “A janela azul”, na terceira casa cenográfica, sempre com fachada artesanal singular, a narrativa versa sobre a lembrança da infância de quem perdeu a mãe que via aparecer no portão de casa quando ela voltava do trabalho.

São episódios dramáticos revestidos de encantamento. O tom fabular desce ao plano da intimidade sem ser invasivo, irmanando o espectador naquela que talvez seja a condição humana mais essencial, a da inexorabilidade da morte. A intuição de que a consciência da brevidade deveria pautar a existência em outras parâmetros, ética e filosoficamente falando.

Sentamos diante da caixa-teatro, à maneira de uma maquete. Colocamos o fone de ouvido para sincronizar a paisagem sonora. E observamos o que se passa lá dentro através de uma fresta, um buraco ou ainda uma portinhola, minúsculos. O procedimento se repete nos três suportes da intervenção do coletivo Eranos - Círculo de Arte transcorrida embaixo da extensa figueira da praça Arno Bauer, no centro de Itajaí.

Em suas sínteses de tempo e de escala, essas experiências sem palavras emanam silêncios da ordem da espiritualidade. São obras abertas ao repertório da vida de cada indivíduo, não importa a idade, postado numa das três filas da praça e disposto a se deixar tocar pelas respectivas partes de “Therése visita a janela azul”.

Apreendidas aleatoriamente, porque independentes, elas dão margem para conectivos conforme, de novo, a subjetividade de quem as frui e pode compor um arco de leitura particular.

foto by Leonam Nagem (Ambar Audiovisual)

Caso da mãe que aguardava sua vez numa caixa-teatro, enquanto a filha e a neta faziam a mesma coisa nas outras duas filas – lugar de exercer sociabilidades, ainda que breves. Ela trabalhou por 33 anos preparando cadáveres para velório numa cidade do interior do Rio Grande do Sul. Mudou-se para Itajaí há apenas duas semanas e foi surpreendida pela abordagem do tema, que lhe é familiar, e pela forma miniatural do teatro lambe-lambe, no âmbito do 6º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha.

Além do triunfo da sutileza na execução, pelo trio de caixeiro-manipuladores, chama atenção nessa linguagem o uso de material reciclado na confecção dos bonecos e dos objetos e adereços. Inclusive ao imprimir noções de perspectiva espacial e de desenho de luz que em nada devem aos recursos do palco ou da sala multiuso.

Angelopoulos abre o seu filme com a seguinte frase, na voz da menina: “No princípio, era a escuridão”. Pois a ausência de luz está na origem dos espetáculos-relâmpagos que capturaram o público naquela tarde ensolarada. A dor tem seus contrastes.


***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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