domingo, 5 de maio de 2019

"Cartografia do Assédio" por Valmir Santos

foto by Lenon Cesar

Jornada interior e demandas do espaço público

por Valmir Santos

Para quem vive em metrópoles, os ouvidos logo distinguem o aspecto silencioso das ruas do centro comercial de Itajaí numa manhã de sábado. A Karma Cia. de Teatro desmancha a presumida qualidade citadina com uma criação que grita as formas de violência contra a mulher.

“Cartografia do assédio” é a elaboração performativa da pesquisa de campo da atuante Pietra Garcia acerca das abordagens machistas no espaço público. Ao culminar em compartilhamento de dados do feminicídio local, explicita parcela paradoxal da sociedade conivente com a cultura da agressão.

Itajaí teve 1.042 denúncias de violência contra a mulher no ano passado, liderando o índice de Santa Catarina se considerada a proporcionalidade da população. No estado, os casos aumentaram 83% só nos primeiros três meses de 2019.

O desafio de qualquer artista em sublinhar a denúncia sem perder de vista o seu horizonte de invenção poética torna-se redobrado diante da urgência dos dias brasileiros. A concepção da atriz e do diretor Renato Turnes processa a pesquisa de campo com fundamentos bem delineados da performance, porém não avança no hibridismo de espaços e de linguagens que propõem sem que as respectivas potencialidades fossem exploradas mais a fundo. ....o expositiva numa sala da Casa de Cultura, o trabalho evolui em percurso por trechos de calçadão, calçadas, faixas de pedestres, desaguando na sala de outro endereço, a Itajaí Criativa – Residência Artística.

Há paradas em que Pietra interage com objetos como um banco de cimento, uma bicicleta e o calçamento propriamente dito, sempre acompanhada e cercada de espectadoras e espectadores embarcados desde o início. Subentende-se estratégias de intervenção urbana que levariam em conta envolver ou atritar, voluntaria ou involuntariamente, o pedestre, o lojista, o ciclista, a família festiva que foi às compras, enfim, a gente que se pergunta (entreouvimos) o que se passa com essa turma seguindo uma mulher de tênis colorido e moleton com capuz preto, sob o foco de profissionais da fotografia e do audiovisual.

Na deriva de Cartografia do assédio sentimos falta de maleabilidade para contracenar de fato com os frequentadores do espaço público, historicamente postos à margem dos sistemas da arte e da cultura. A relevância do assunto, intuímos, passou incólume à maioria. Não descartamos que a frase de impacto numa cartolina erguida pelos braços de uma mulher seja, por si, capaz de afetar a recepção avulsa. Mas o corpo, aqui, foi menos veículo do que nas salas.

O percurso transmitiu a sensação de que circunscreveu seu olho no olho aos cerca de 40 espectadores que diligentemente a seguiram no encalço. Parcela deles estava situada no ambiente do festival que naturalmente contempla iniciados em artes cênicas. Como passar ao longo do calçadão e se deixar atravessar também pela mulher evangélica, para ficar num dos segmentos não convertidos à arte, alvo da guerra cultural em curso?


Pietra Garcia tem o olhar e a voz convictos de sua geração mais propensa a abraçar os feminismos incondicionalmente. Seu ímpeto juvenil move as mulheres que vieram antes dela no exercício dessa consciência, ou mesmo aquelas que ainda não atinavam e ora despertam, assim como porção não desprezível de homens. Sua presença dialoga com a das estudantes do ensino médio que recentemente lideraram ocupações em escolas e articulam-se em outras frentes.

A atuante ganha a cumplicidade das espectadoras que dão corpo a uma manifestação com cartolinas de protesto, observadas pela ala masculina simbólica e fisicamente apartada em algumas passagens. Prática de distanciamento que produz efeito sobre a percepção distinto da passividade voyeur e gera reflexão parelha à do Grupo XIX de Teatro (SP) em “Hysteria”. Naquele relevante espetáculo da década passada, a plateia era exclusivamente composta de homens enquanto as mulheres ocupavam literalmente o espaço cênico de um imóvel antigo no qual as atrizes viviam pacientes de um hospital psiquiátrico vítimas da ignorância dos dogmas religiosos e científicos à época, por volta de dois séculos atrás.

No primeiro momento, entre quatro paredes, Pietra nomeia em seu corpo o nome das entrevistadas, adultas ou menores de idade, que relataram as violências sofridas em situações cotidianas as mais prosaicas, como ir à escola ou à academia, ou naquele contexto em que a mãe orientara, por educação, dar bom dia a policiais que responderam agredindo verbalmente uma menina.

A geografia das ignomínias vivenciadas em locais e bairros itajaienses é simbolicamente confrontada na caminhada ao ar livre, como comentado há pouco. Já no desfecho, a artista acena com o depoimento pessoal, permitindo ao público construir o elo cidade-atuante (a infância e a adolescência nem tão distantes) com o projeto que, sugere, lhe foi transformador. Ela enfrenta o patriarcado exercendo sororidade com as vozes que reverbera na performance. E devolve a própria jornada interior lutando pela indissociabilidade dos direitos humanos.

O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena


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