segunda-feira, 6 de maio de 2019

"Índice22" por Luciana Romagnolli

foto by Lenon Cesar
Este obscuro objeto do desejo

por Luciana Romagnolli

Agora já é passado. Quando escrevo estas palavras, “Índice 22” já se encerrou no tempo cronológico. Até que se refaça em outra noite de apresentação, a peça da Téspis Cia de Teatro é passado, morto. Ao mesmo tempo (o outro, o tempo subjetivo) faz-se presente reavivado em minha memória consciente e, talvez, inconsciente. O que essa efemeridade diz da realidade da experiência e de sua permanência? A companhia catarinense perscruta as dobras escuras da mente no solo de Denise da Luz, escrito e dirigido por Max Reinert. Faz da cena o cárcere obsessivo de uma subjetividade presa a uma espiral de ruminações. Angustiada por essa hipertrofia do pensamento, clama por que algo aconteça. Mas o que acontece é o próprio pensamento, que se faz ato e repetição.

Tentado a compreender o mundo fora e dentro de si (um modo do ego dominá-lo), entrega-se a uma investigação reflexiva sobre o mal e o gozo em tempos de destituição subjetiva e sadismo compartilhado pelas redes sociais.

A linguagem psicanalítica ensaiada nesta crítica serve à tentativa/tentação de abrir uma fresta para a luz na opacidade da cena armada pela companhia, sem reduzir as suas indeterminações e indagações a afirmativas e pretensas respostas. Fazer, talvez, pulsarem mais algumas inquietações.

Índice 22” tem essa qualidade magmática de compostos voláteis em estado variável de fusão, que se acumulam sob alta pressão e temperatura e extravasam em erupções. Metáfora para o sofrimento psíquico que a encenação tangencia por meio do corpo da atriz, do corpo da tela, dos instrumentos musicais, do corpo da luz e do corpo das palavras. “O cenário era um bisturi penetrando na pele. Não, o cenário é a pele”. Ecos.

Estalos

Nas primeiras imagens, sob uma paisagem sonora de nomes próprios, a luz se decompõe em camadas sobre a pele da atriz, que estala violentamente uma baqueta contra a superfície de uma caixa percussiva (cajon), produzindo batidas graves. Como um demônio narcísico de olhar perverso que se satisfaz com o acúmulo de excitações de uma cena em caos sinestésico.

Adiante, essa cena convulsionada encontra paralelo numa espécie de infecção hacker que faz tremer os pixels e destrincha as cores dos textos projetados. A materialidade cênica colapsa ante as contradições da sobreposição: uma descrição sensorial em primeira pessoa de um ato de violência sofrido é recoberta por palavras conhecidas de julgamento e culpabilização da vítima.

É impossível situar se essa disputa de vozes ocorre num tribunal, numa rede social ou dentro da mente de alguém. A dramaturgia se tece na indeterminação do sujeito e nessa multiplicidade de cenários em simultaneidade.

Cenários extremos de violência e perversidade, aludidos por ruídos e nervos e vísceras autopsiadas. A(s) voz(es) subjetiva(s) encarnada(s) em Denise transita(m) entre esses destroços atormentada(s) pela ambivalência de um “prazer sofrido”. Paira a noção lacaniana de gozo como essa superposição de prazer e desprazer.

foto by Lenon Cesar

Num palco amealhado de vestígios de narrativas interrompidas, a cena teatral ecoa a cena da fantasia subjetiva do obsessivo. O discurso cênico, em certo momento, faz-se como fala em transferência analítica. Como um ego aprisionado a esse frenesi narcísico do repisar da própria dor, debate-se contra o trauma como definidor de toda uma identidade. As descargas de energia excedente em ruídos e contrações impedem que o sistema se aniquile. É armadilha da qual não se escapa.

Então, o fazer e refazer próprio do teatro, ressuscitado a cada nova apresentação, se assemelha a essa compulsão à repetição. Repetição daquilo que extravasa a economia psíquica e, por isso, não cessa de acontecer no tempo subjetivo. A atriz que repete noite a noite a corporificação de uma ficção diante de um público manifesta uma espécie de revivência do trauma, como quem, recusando a perda/morte, tenta/é tentada a estancar o tempo para manter aberta a ferida.

A Téspis desce a esse obscuro abismo intrassubjetivo de estranhos objetos de desejo determinada a sustentar a insegurança de não se firmar nas certezas e reafirmações. Encontra o desafio de uma encenação do impalpável e do incomunicável que não se encerre em um autocentramento nem se torne obstáculo à escuta e à relação intersubjetiva. A sinestesia da cena funciona como esse bisturi que pode rasgar a pele entre palco e plateia quando as ruminações da angústia se tornam inacessíveis em sua autorreferência narcisista. O risco remanescente é de um ataque aos sentidos que os sature de uma mesma tonalidade sombria, obliterando a percepção.

Então, quais modulações rompem a gravidade? Como dar corpo cênico às contradições da perturbação psíquica? E como encenar a dor não tal qual paisagem que se observa afastadamente, objeto alheio, mas brecha à travessia sensível entre sujeitos?

***A jornalista Luciana Romagnolli é crítica e editora do site Horizonte da Cena

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