segunda-feira, 13 de maio de 2019

"Por onde andei" por Valmir Santos

foto by Carolina Copello

O raio de ação de pisar na grama

por Valmir Santos

Entre as ações mais conhecidas da performer sérvia Marina Abramovic está “Os amantes: a caminhada da Grande Muralha” (1988). Ela partiu de uma extremidade e o artista alemão Ulay, de outra, percorrendo o conjunto de fortificações do norte da China feito de pedra, tijolo, terra compactada e outros materiais. Noventa dias depois, o casal se encontrou em determinado ponto do monumento para marcar o fim do relacionamento e da parceria criativa. Contrariando o provérbio do poeta espanhol Antonio Machado, o caminho também se desfaz ao caminhar (“Caminante, no hay camino,/ se hace camino al andar”).

Leandro Maman é artista do coletivo Eranos Círculo de Arte e bolou a performance “Por onde andei”, em que cumpre o programa de percorrer três quarteirões do calçadão da rua Hercílio Luz, no centro comercial de Itajaí, pisando exclusivamente a grama com os pés nus. Para evitar contato com o chão de concreto ele improvisou um “tapete” enfileirando placas de relva com cerca de 60 centímetros cada uma.

O trajeto de aproximadamente 600 metros passou por duas faixas de pedestres e estimamos ter durado noventa minutos. O procedimento solitário consistia em apanhar a placa traseira da fila de gramas a seus pés e carregá-la para a dianteira, sucessivamente, espichando um caminho artificioso espalmado pelos pés. Esse movimento contínuo, por sua vez, desenhou um rastro de terra no calçamento e poucos minutos depois a ação passou a contar com a interação de parte do público.

Mamam chegou a ter dezesseis braços voluntários no deslocamento das placas. Cumplicidade de pessoas possivelmente vinculadas ao campo das artes cênicas que o Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha demanda. A maioria foi vista nesses dias em filas de espetáculos da programação.

Talvez por isso a dinâmica de jogo logo se impôs. Algum colaborador da ação propôs espaçar as placas e o performer modificou seu ritmo. Os passos transformaram-se em saltos. Ele chegou a ser carregado pelos parceiros avulsos. O “jeitinho” alterou o programa. Mamam estava aberto às intercorrências. Numa ocasião anterior, no mesmo local, “Por onde andei” somou engajamento de três pessoas.

foto by Carolina Copello

A recepção a essa travessia inusitada, concluída na área externa e gramada da Casa da Cultura Dide Brandão, não poderia deixar de ser afetada, por exemplo, pela reação ou indiferença dos pedestres e trabalhadores do comércio ao longo do calçadão.

Das interpretações ouvidas nas portas das lojas, ouvimos gente atribuindo a performance à busca por Cristo; praguejando o ex-presidente Michel Temer, que deveria ajudar a carregar as placas como um castigo por causa da corrupção; ou elaborando a adesão daqueles que arregaçaram as mangas e sujaram suas roupas de barro como manifestação de solidariedade à otimização do percurso do artista.

Por onde andei” transmite uma sensação de impotência da arte em se fazer presente na paisagem urbana e, por extensão e pelo debate urgente, na sociedade como um todo. Seja no ciclo repetitivo, como um Sísifo carregando pedra, seja na interação paliativa com interlocutores já iniciados no riscado, o artista vestido de terno e calça pretos – figurino devidamente manchado pela terra que solta da grama – enfrenta limites no seu raio de ação.

Um homem de origem haitiana juntou-se a Mamam, que lhe foi receptivo – apesar da barreira recíproca da língua. O atuante chegou a orientá-lo a cuidar da coluna na hora de se abaixar ou de se erguer para transportar as placas.

Mas essa troca se deu, vimos depois, porque o estrangeiro sorridente e proativo intuiu no mecanismo reiterativo da performance uma oportunidade de trabalho informal remunerado. Posteriormente, na roda de bate-papo com parte dos caminhantes que seguiu o performer, o rapaz compartilhou sua necessidade de enviar dinheiro aos filhos que permanecem no país caribenho e teriam se tornado órfãos recentemente.

A performance enviou sinais autômatos para traduzir as dificuldades de construir qualquer forma de relacionamento nos dias que correm ou já trazia em seu sistema interno um jeito acanhado de gerar capilaridade? Para pegar carona na planta rizomática que a grama é, que insights ainda subjazem do processo de criação? Como intensificar a presença em espaço público bastante disputado por bicicletas no fim de expediente de uma sexta-feira?

***O jornalista e crítico Valmir Santos é editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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